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Mostrando postagens de 2015

A morte do rei

Eu estava pra lançar aqui o quiz: pelos próximos três anos, o chefe de governo no Brasil será Michel Temer ou Renan Calheiros? Mas veio o bom dia da Lava Jato e embaralhou a próxima rodada. Saí por aí, então, no passeio do sábado. Clique aqui, download ali, topei com uma notícia de 1986 no New York Times: George V da Inglaterra contou com uma injeçãozinha do médico pra morrer apropriadamente. Havia anos, o rei padecia de problemas respiratórios que, no começo de 1936, agravaram-se. O ar sumiu dos pulmões, a morte deu o ar da graça e a família chamou o médico: que ele não sofresse tanto. Mais que isso: se tinha que morrer, que fosse a tempo de o anúncio sair nos jornais matinais, e não nos tabloides de fofoca vespertinos. Na mesma noite, alguém ligou pro Times: - segurem a edição! Dali a pouco, uma enfermeira preparou um sossega-leão e George, afundado na própria juba, desejou-lhe a maldição antes de dormir para não ver a mistura de morfina e cocaína q

Meu primeiro, não foi assédio

Nevinha não tinha disfarces. No primeiro dia de trabalho, quando riu, me olhou e disse o próprio nome, eu já soube que havia ali algo que perturbava sem que eu soubesse como nem por quê. Ela passava rindo, rebolando, convidando ao que eu não sabia ainda o quê. E os homens da família faziam cara de sério, as mulheres faziam cara de quem saía do sério. E as crianças? Bom, eu era criança e, onde havia interrogação, seguiam-se as reticências. Comecei, pois, a ter mais sede que de costume, a beliscar as panelas, a querer enxugar os pratos depois do jantar. E da cozinha começaram a sair risadas, grunhidos, silêncios. Vovó vinha fazer vistoria. "É só o menino aprendendo a rezar a ave-maria." Vovô vinha passar o pente fino. "É só o menino aprendendo a rezar o padre-nosso." E me chispavam pro quarto. Quando a casa ficava vazia no meio da tarde, ela vinha me trazer o lanche. Bandeja vazia. "Tenho coisa melhor pra te dar!" - ela

É tudo, tudinho

Cadarço torado, vou às antigas Brasileiras, que têm um nome não muito novo ao qual nunca me acostumei, e saio de ponto em ponto até parar na única em que o dono diz: - tem sim sinhô. E são tantas as cores e tantos os tamanhos que me espanto ao saber que o meu é modelo antigo, fora de circulação. Penso na ciência dos sapatos, imagino o soneto dos cadarços, mas é de crise que seu Antônio fala: - Cheguei a apurar duzento por dia, mas (repare mermo) hoje inteirei vinte com essa venda e já tou me dando por satisfeito. Pergunto se tem tido dificuldade pra pagar as contas, se espera a recuperação pra logo, se atribui a culpa da situação ao governo federal e se vai se revoltar antes que o caldo entorne. - Olhe, é tudo, tudinho culpado, mas revoltado mermo eu tô é com as fábrica, que tão me deixando sem sortimento. * Saio de um encontro e, suando pelas canelas, pego um táxi. Falta um mês pro verão oficial, mas ele já tomou posse de todos os espaços e entrou em

Dois curtas

Nova Iorque em nove shots 1. John Lennon imaginava o mundo sem posses nem Paraísos num paraíso com vi$ta pro Central Park e Lauren Bacall como vizinha; 2. Falando em Lauren, o apartamento onde ela morou até morrer pode ser comprado por qualquer fã. Um pequeno prazer por $ 24 milhões; 3. É verdade: a cidade não dorme. Que o diga o dono da Books and Records: ''volte amanhã, garoto, que agora vou pra casa descansar''; 4. Muitos brasileiros têm preferido trocar São Paulo por Miami, porque Nova Iorque está trocando carros por bikes pra atrapalhar o trânsito; 5. Não doeu, mas meu primeiro encontro com a high society, numa esquina da cidade, vai custar uma perna nova. Dos óculos! 6. Greenwich Village é realmente um bairro de amigos: único lugar do mundo em que a distância entre o spa e o convento é a porta; 7. Depois do português, a língua estrangeira que mais ouço é o inglês. Nova Iorque vale um intercâmbio pra aprender espanhol;

É só uma turma aí fazendo outro filme

A semana começou em eleição e terminou em literatura, por isso mesmo o Festival Internacional de Autores parece não ter outro assunto: política. Tudo bem, exagerei; ainda é o terceiro dia e eu só fui a duas de dezenove mesas e papos. Pingo no i, portanto. Steven Pinker veio na quinta pra conversar com Ken Dryden sobre cérebro, escrita e violência; terminou entrando na eleição canadense quando um ouvinte perguntou: por que os adversários são tão agressivos no debate político? Porque não se mobilizam militantes com ponderação. – respondeu Pinker. E deu sarna pra quem coçou: por quanto tempo você ficaria vendo um jornal que noticiasse apenas que tudo está em paz e dentro da mais absoluta normalidade?  Políticos precisam do ringue, como jornalistas do desastre. Ontem, vieram Sara Winman, Tim Conley e Jillian Tamaki (olá, prazer conhecê-los!) pra discutir fantasia e realidade na literatura do século XXI. Tim Conley começou fazendo piada: qual a diferença

Diga a eles que sejam menos rudes

(Ou: recado aos ladrões de Campina Grande, da Paraíba, do Brasil) Dias desses, descendo a Rue Saint-Urbain a caminho da Sainte-Catherine, topei com uma das muitas figuras que fazem Montréal bater Toronto em matéria de - por que não armar a barraca aqui?  "Muito feio para a prostituição. Esmola, por favor." - lia-se no cartaz ao lado da caneca em que o rapaz, certamente no vigor dos seus trinta e poucos anos, esperava ganhar o pão do dia. Cheguei perto, pedi licença, soltei a língua. Que ele estava pessimista: barba feita, perfume passado e roupas bacanas no corpo malhado, poderia viver com menos dureza e mais prazer. E ele, na bucha: mas aí teria que mudar o texto para 'muito cristão para a prostituição etc. e tal' e me pediu ele a licença, que eu estava lhe atrapalhando o negócio. Pardon, Pardon! Ça va. Aí é que tá. Em Toronto, os mendigos são menos artistas e mais operadores de telemarketing. Ontem mesmo, falei com um em Dundas Squa

Minha vesícula não cooperou

De tudo o que tenho tentado sem sucesso algum conhecer, a Música salta aos ouvidos como o que há de mais difícil, depois da Física, de fazer passar dos sentidos aos circuitos da razão. Uns relampejos aqui, umas trovoadas ali, e a História da Música Ocidental de Otto Maria Carpeaux continua acolá tão introdutória e tão despojada, mas tão inacessível a estes miolos tão moles. Nem falo de outras e mais técnicas tentativas, que humilhação grande se disfarça. Vejam este exemplo. Outro dia, voltei pra casa com um álbum em três cedês de Ytzhak Perlman na bolsa. Sim, ainda compro cedês; e sem culpa. Ao contrário, alegro-me por contribuir com dois ou três tostões para que um artista não tenha de ganhar a vida num tribunal pé-no-saco de justiça. Lá dentro, no encarte, certo Mr. Shapiro apresenta o tal Perlam Sound como "lustrous, warm, generous". Arranho o cedê e sinto as cordas cintilarem, mas não sei explicar como nem por quê... ... muito menos sa

Pelo menos é bonito

O Primeiro-ministro solicitou e o Governador-geral dissolveu o Parlamento em nome de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra. Eleições em outubro, debates em curso e um escândalo nos jornais. Dois anos atrás, o Senador Mike Duffy foi descoberto recebendo auxílio-moradia para desempenhar o mandato na capital quando, na verdade, tinha casa própria em Ottawa. Teve que devolver o dinheiro. Mas, como não tinha recursos, quem pagou a conta foi Nigel Wright. Rapaz rico e generoso, Mr. Wright era Chefe de Gabinete do Primeiro-ministro e, sem contar nada ao patrão, tirou a grana do bolso. Bagatela: 90 mil dólares canadenses. A operação foi descoberta, Mr. Wright caiu porque o dinheiro não fora declarado e Mr. Duffy foi processado por fraude aos cofres públicos. O processo ainda corre na Justiça e chegou a hora dos depoimentos. Mr. Wright invocou os Santos Evangelhos para justificar seu ato de caridade, admitiu que pagou contas semelhantes de muito mais gente

Pode comprar esta aqui

Não sei quem foi Frances, mas sei que em junho de 1934 ganhou de R.G. uma antologia dos ensaios de Emerson e não deixou no livro pista alguma do que, muito menos de como leu. Também não faço a menor idéia de quem foi Susan L. Kobel, mas sei que comprou o livro que um dia foi de Frances e não perdeu tempo em demarcar território com um senhor Ex Libris. Digo 'sei que comprou', mas deveria dizer que suponho, assim como suponho que Susan obteve o livro depois de Frances; e vocês me digam por favor se estou viajando além da conta.  Suponham comigo. R.G. foi alguém que privou o suficiente da intimidade de Frances para ir direto ao ponto (To Frances – June 1934) e não perder tempo com torneios como nome completo, best wishes and kisses. Se o presente não foi de Natal, há de ter sido de aniversário, formatura, ou viagem - não sei. Mas aposto os dois olhos da cara que Frances foi a primeira dona. E aqui chegamos à suposição. R.G. não teria dado d

E nós sabemos como fazer

Victor Shalma nasceu no Marrocos, logo após a fundação de Israel, em uma família que escapou ilesa do Holocausto. Aprendeu francês na escola, hebraico em casa e árabe na rua. Ainda criança, começou a padecer de uma doença que ele não sabe ao certo nomear e os médicos não sabiam ao certo tratar. A mãe leu no conjunto um chamado divino para a Terra Prometida. A família mudou-se para Tel Aviv, ele sarou repentinamente e a mãe viu que Elohim é bom. Mas Victor não se tornou muito religioso e preferiu tratar de ganhar a vida com as próprias mãos. Durante o serviço militar, aprendeu a manobrar tratores e fazer carpintaria. Certo dia, ouviu dizer que o Canadá precisava de braços fortes para derrubar árvores e trabalhar a madeira. Leu nisso o sinal da sorte. Comprou passagem, singrou o choro da mãe, não se deu com o francês de Québec, fixou residência em Ontario e, como garante orgulhoso, quase fez grande fortuna. Bom coração e mulheres. "Por causa di

O velho meu avô

Vovô Toinho me dizia que a vida é difícil e, para provar, falava do sono que sentia quando, ainda criança, era acordado cedo para trabalhar na fábrica artesanal de lanternas orientais da família. Também me dizia que o desconcerto do mundo vem do Império Romano e, para provar, pegava sua velha edição do Espártaco de Howard Fast para ler algum trecho por ele sublinhado. Não se dava com o fato de Portugal, tendo menos de cem mil quilômetros quadrados, ter conseguido colonizar um país com mais de oito milhões de quilômetros quadrados como o Brasil. Mas se dava com a sorte e via em Elizabeth II da Inglaterra a prova mais evidente de sua existência. "Ela não teria sido rainha se o tio não tivesse abdicado." - repetia, como se não repetisse. Contava os aperreios da vida de viajante comercial com o sorriso triunfal de quem, ao fim, sobreviveu. E sorria ainda mais de como, em meio aos aperreios, soube divertir-se em alto estilo. Lamentava não ter

E o sobrinho dele também

Ouvi de não lembro quem há não sei mais quanto tempo que só é preciso conhecer três pessoas para vir a conhecer qualquer tanto neste mundo de muitos humanos e ainda mais deuses.  Ai, lembro sim.  Era um otimista, com as virtudes e os vícios do tipo. Conhecia um professor que conhecia um ex-ministro que conhecia um ex-presidente da República - e tirem vocês suas conclusões. Ou guardem todas para o que vou lhes dizer: não faz três rotações que fui ao cinema e, como quem come pipoca, quase saí de lá com o endereço de um Nobel de literatura na agenda. Tudo bem, eu sei. O tal premiozinho só faz sucesso entre leigos e amadores; mas esse quase-amigo escreveu uma página impagável sobre a arte de fingir menosprezo. Vale, pois, a crônica. O fato foi o seguinte: conheço a colombiana Sara, que conhece o peruano Michael, que conhece um sobrinho de Vargas Llosa em Lima. Saímos pra papear, ver The Man from U.N.C.L.E. etc e tal. Conversa vai, convers

Quanto mais simples, melhor

Prometi resistir, mas me deixei cair na tentação. Antes que o primeiro mês se completasse, pedi indicações, corri à livraria e, com o alívio de quem goza ao pecar, procurei uma gramática. Acontece que, pra quem foi criado com Celso Cunha e Anézio Leão na dieta em louça de pavão, o prato de batata não desceu pela goela. Se ao menos houvesse umas cebolas pra dar gosto. Os gramáticos de cá escrevem manuais, orientados para o uso e conforme o nível do falante. Iniciante? Compre a básica. Intermediário? Tarja azul. Avançado? Aquela outra, à direita. E que é das citações dos clássicos? Onde aquele passeio por dez séculos de língua em busca do brilhante mais reluzente? Dois ou três versinhos em meio aos exercícios de fixação? Esqueça. - Em inglês, quanto mais simples, melhor. - diz a professora Hayley. Ouço com a resignação embalada pelos cabelinhos brancos que já vão ponteando no queixo. E penso nos dicionários, que marginalizam certos moradores como habi

Essa, eu preciso contar a minha mulher

Volto pra casa e dou com Victor ainda em pé. E aí? - quer saber. A pior viagem da minha vida. Gente grosseira, cidade suja, lixo de comida; tudo é exagero e entretenimento ali. - desabafo. Ele abre o sorriso dos justos e fala: não lhe disse? a única coisa boa de ir aos Estados Unidos é o alívio de cruzar a fronteira de volta ao Canadá. E me deseja os bons sonhos de que preciso. Não sei se são os Estados Unidos, ou se é apenas Chicago. O fato é que, voltando a Toronto, paramos em uma cidadezinha de Indiana para os shopaholics fazerem mais uma das muitas compras. Três horas de purgatório. Mas uma simpática cafeteria e o Jonathan Franzen na malinha prometem salvação. Depois de três dias, volto aliviado a entender algo do que me dizem em inglês. - Não se preocupe, nem eu entendo o que falam naquela bagunça que é Chicago. - diz a atendente. E me deseja boa leitura ao som da musiquinha francesa clichê que ecoa não sei de onde. Pego o dicionário e

Paris pode ser tão sem graça quanto

Os amigos pedem notícias e querem que eu confirme a impressão nossa de cada dia: qualquer país do mundo desenvolvido é melhor que o Brasil. Se é assim, por que voltar? Conte os ministérios aí com a mão, que são poucos. - garante um. Eu conto e descubro que o gabinete do Primeiro-ministro tem 48 pastas, ocupadas por 38 titulares. Até os veteranos têm uma só pra si. Certamente, os canadenses não pagam impostos pra sustentar vagabundos. - assegura outro. Mas Jina reclama todo santo dia da carga tributária pesada para custear os benefícios do estado de bem-estar. Até mãe solteira ganha bolsa do governo! - seu desabafo predileto. Eu lhe digo que também há muita revolta no Brasil contra os impostos pagos, mas as realidades são diferentes porque ela conta com educação, saúde, segurança e transporte públicos de qualidade. Ela confirma que o sistema de transporte é excelente, não tem nada a reparar no atendimento médico e diz que, se alguma ameaça à paz

Aguarde o frio chegar

Se a primeira impressão é a que fica, meu cartão de memória já gravou para sempre a imagem da gentileza dos moradores de Toronto. Levei menos de uma rotação pra descobrir. Feitas as apresentações em casa, saí à rua com Jina para conhecer pontos de referência e comprar o cartão de transporte. Na altura da ladeira em Finch Av., um rapaz se aproximou. Tremi. E pensei: nem dormi a primeira noite e já vou ser assaltado! - Senhora, há uma bicicleta descendo a rua atrás de vocês; cuidado pra não se machucarem. Dupla vergonha. Primeiro, por ter pensado mal do garoto. Segundo, por ter me sentido um bruto. Relatei o susto e a catarse a Jina, que sorriu: "É sempre assim com os brasileiros." As demonstrações se sucederam com a rapidez do verão canadense. No dia seguinte, abri o mapa em Front St. e uma senhora surgiu do nada oferecendo ajuda.  No almoço do terceiro dia, a garçonete me serviu água de graça e, quando se deu conta de que eu a havia bebido num

Isso aqui não é a Inglaterra

A imagem mais antiga que tenho do Canadá vem da velha Mirador do meu pai: as duas torres curvadas da prefeitura de Toronto, em torno de uma tigela que lembra o Senado brasileiro. Segunda passada foi feriado - Civic Holiday. Então, desci ao Centro para ver se a imagem batia com a realidade e conferir o que se passava na praça da prefeitura em dia de festa cívica. O edifício não me pareceu tão impressionante quanto a memória de infância fazia supor. Na praça, apenas alguns turistas vendo a cidade através dos celulares e um balcão oficial de informações. - O que é exatamente o Civic Holiday? O rapaz a quem pergunto pede ajuda a uma moça que me estende um folder e explica que em Fort York posso conferir algumas celebrações à tarde. Não entendo o fim da frase. Mas faço minha primeira descoberta: York era o nome original do povoado que existia à beira do lago Ontário e em torno do mercado, da igreja e da prefeitura, alguns metros a leste da atual. Come

Crônica madrugada

De vez em quando, dormir é aventuroso. Outro dia, aliás, outra noite, sonhei que a revolução cubana estava em curso no sétimo andar do San Pietro, aqui na Bela Vista. Da janela, Fidel Castro prometia tomar a cidade antes do amanhecer. A resistência havia sido organizada três casas e um terreno baldio a oeste, mas dava sinais de queda iminente. Os rebeldes forçavam a porta quando, num sobressalto meu, Campina não se tornou Havana. Já fui preso por deserção na casamata de Hitler. Usei bengala e com ela impedi Bioy Casares de retirar certo livro da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Vi Jesus de Nazaré numa sacada em Salvador. Mas nada se compara à noite, aliás, ao dia em que o carteiro chamou na calçada e me entregou uma caixa dentro da qual estava a caveira de Ricardo III, com cartão assinado por Elizabeth II. Um sonho! Um sonho! Minha insônia por um sonho! E se o sono descambar em pesadelo, que os cílios vibrem e os olhos voltem a rasgar o escuro ha

Uma lição de vovô

Vovô José contava que, quando a primeira igreja protestante se instalou em Cajazeiras, o bispo católico reuniu o rebanho na missa dominical e decretou a morte civil dos estranhos no gado. Que ninguém dirigisse a palavra aos hereges, fechasse qualquer negócio com eles ou lhes desse sequer o alívio de uma fruta na feira, de um copo com água, de um sorriso acanhado. Sentado na segunda cadeira e morador do casarão cruzando a rua ao lado, o coronel Peba assistia a tudo com o silêncio e a pose de quem consentia a continuidade da velha e santa aliança. Decreto baixado, missão confiada, partiram todos na paz que a ordem traz. Até que, um belo dia, dois protestantes apareceram na vendinha improvisada que os meus bisavós mantinham na cidade quando a falta d'água ameaçava deixá-los sem mantimentos no campo. Balconista, vovô entrou em guerra civil.  Se cumprisse o veto, não faria a venda; se fizesse a venda, iria pro inferno. Mas também, o que a

Questão grega

(um lampejo) Creio que foi Lima Barreto quem decretou a morte da Grécia Antiga nas letras nacionais. Talvez tenha pretendido menos ser juiz ou profeta que alfinetar Coelho Neto, para quem "Ésquilo, comparecendo perante o Areópago, teria sido inevitavelmente condenado por crime de impiedade se Amínias, seu cunhado, precipitando-se, de onde se achava..." caía bem no princípio de uma crônica do Rio de Janeiro em 1921. É verdade que a Grécia Antiga já havia caído mortinha da silva bem antes disso, quando Alcibíades visitou o desembargador X... e não suportou a simples visão de um diferente - costume. Mas não tiremos outro doce do bom Lima para dar mais uma glória ao grande Machado. Deixemo-lo estar como profeta. De uma profecia que não vingou, passado o vendaval modernista. Pois não continuamos a encontrar a Grécia Antiga em crônicas de Nelson Rodrigues, poemas de Dora Ferreira da Silva ou traduções de Carlos Alberto Nunes? E não continu