Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2017

Strudel ao pé do muro

O século passado estava nas últimas quando fiz minha primeira e única viagem à Alemanha. Durou coisa de umas três horas e o trajeto foi pouco mais que um pulada de muro.  Tudo bem, até que vi demais Jornada nas Estrelas na extinta Manchete, mas não é de teletransporte que estou delirando. O negócio é que meus vizinhos do fundo eram alemães. Chegaram ali pouco depois que minha família e eu nos mudamos pra casa da Bela Vista e, durante um bom tempo, não passamos de estranhos dividindo o muro do quintal. Até que um belo dia Ulrich esteve lá em casa para tratar não sei de que e - bum! A imagem daquele homem esguio, que falava um idioma exótico, entrou-me na fantasia de menino.  Dali a um tempo, minha mãe e eu topamos com ele e a esposa no Iguatemi. Conversa vai, conversa vem, Gabriele nos convidou para um almoço em sua casa, dia tal, hora tal. Foi aí que se deu a viagem. Fomos à Alemanha dando a volta no quarteirão e entramos no país atravessando a Flor

Dr. Virgílio, um humanista

Quando dr. Virgílio Brasileiro me viu pela primeira vez, eu estava chorando e ainda não era sequer capaz de enxergá-lo. No dia seguinte, eu estava pálido e ele viu que minha primeira semana de vida seria uma batalha contra o tempo, pela sobrevivência. Escapei graças a ele, aos meus pais e ao sangue de um produtor de cana e de um soldado do Exército. Talvez por isso eu seja um pacifista. Nos anos seguintes, dr. Virgílio voltou a me ver tantas vezes quantas foram minhas febres, dores e fraquezas de menino não muito forte. Depois fui crescendo e se deu a mudança: eu passei a ver dr. Virgílio. Ai, não. A coisa se deu ainda ali, no consultório da João Alves de Lira. Fui levado por meu pai a uma consulta. Quando entramos na sala, dr. Virgílio estava lendo um livro de literatura. Sentamos. E ele disse: - Epaminondas, um médico não pode entender apenas de Medicina. E ele era curioso de muita coisa. Uma vez, eu o encontrei na rua e ele, que estava estudando russo, veio

A mão invisível

Ela está em todo canto deste planeta, é mais presente que o mais onipresente dos deuses, porque veste, alimenta e dá abrigo, ou nega tudo isso até mesmo a quem nela não crê. É a Geni pelo avesso, que nos mima com facilidades na cama, no banho, na mesa ou na palma da mão, para depois ser insultada pelo que cobra em sangue e suor na canela. Nem sempre esteve aí. Senhora recente de humanos, seus não mais que três séculos sequer fazem cócegas no rival que, mesmo milenar e surrado, continua dando (pro) gasto. Aliás, embora vivam às turras no mercado, os dois se encontram o tempo todo no banco, fazem a corte e não é raro que se casem ora com pompa, ora com muita discrição. Há quem se derreta por ela e pense que sem seus afagos e suas bofetadas, vamos parar na sarjeta. Mas há quem veja que, não fosse o rival, muita gente nem sairia da sarjeta. Já tive cá uns encontros com ela. Em meu primeiro emprego, por exemplo, ela se negou a assinar carteira e descontar a P

Uma matinê

Dia desses, eu estava em um sebo do Rio de Janeiro em busca de edições antigas do Memorial de Aires quando uma mulher entrou na loja e se dirigiu ao dono, no caixa.  - O senhor compra livros usados? - É disso que vivo. - Estou perto do fim e não posso mais cuidar dos meus. - Quantos? - Vamos por partes. Primeiro, eu lhe trago uns quinze, depois outros quinze e assim por diante. Pode ser?  - Claro. A mulher ficou de voltar durante a semana, despediu-se e saiu engomando o corredor da galeria. Eu fiquei ali dentro, já esquecido do meu propósito, corroído de compaixão. Imaginei a saída dos primeiros quinze soldados, quando os outros sabe-se lá quantos ainda estariam em número suficiente para disfarçar a ausência das primeiras baixas. E me perguntei como ficaria a pobre velha quando só lhe restassem os últimos quinze, denunciando a dispensa do batalhão? Foi então que dei, sem querer, com um achado. Dez livros de Josué Montello, autografad

Horizontes

Vira e mexe, volta a notícia. Digo notícia, mas tem espírito de profecia. Enfim. Lá para as bandas das ilhas Canárias, dorme um vulcão de nome indecorável que, mais dia menos dia, vai acordar.   Quando isso acontecer, ondas viajarão a mil quilômetros por hora, dando voltas em torno de si mesmas, em direção ao nordeste do Brasil. Apesar de bem avisados, morreremos todos naufragados.   Ge rusa, a sábia de Santa Teresinha, soube disso coisa de uns cinco anos atrás. Ligou de imediato para mim. Tremia de pânico. Que eu fizesse a mala e retornasse a Campina sem pestanejar. Durante anos, minha mala esteve pronta de segunda a sexta e a permanência em João Pessoa foi uma questão de necessidade, não de pestanas. Mas não subi a serra por isso e aqui fui ficando. Já estava esquecido da notícia profética quando, dia desses, lendo um perfil biográfico do padre Vieira, topei com a descrição por ele feita da aproximação da esquadra holandesa em 1624. Terror - eis a palavra cu

Se nada der certo,

eu vendo o carro pra rebobinar a fita e reabro a Tela Vídeo só pra fazer matinê com aqueles filmes de arte que ficavam no fundo da loja e muito, muito lentamente se renovavam. Melhor que isso.  Se nada der certo, também vendo o apartamento, quito a dívida imobiliária e compro um terreno bem grande só pra fazer um novo parque do povo, cheio de ópera e repente. E se nada disso der certo, aperto o cinto em casa, faço um consignado no banco e custeio a angioplastia de mainha, pra pagar o dano dessa aventura toda em seu coracisco. Ou ainda! Se nada der certo, vendo o relógio de algibeira ao relojoeiro que aboticou os olhos pra ele, compro uma carrada de livro velho no sebo e inicio o meu próprio negócio com as traças. Sem falar que me sobram uns mil réis na poupança e, se nada der certo, eu faço a mala, compro a passagem e me mudo pro Leste Asiático; vou ensinar português brasileiro em Macau. E se nada der certo, vendo os direitos autora

Coco Chanel para presidente

Dia desses, um convite de casamento me fez tirar o paletó do armário. O mofo reinava de tal modo que foi preciso levar os panos para a lavagem antes mesmo de suá-los na igreja. Dezesseis anos arrastando correntes no mundo forense e até agora consegui a proeza de não assar no forno de nossa terra, para lá de tropical, embalado em paletó e gravata. Ufa! No começo do século, fui ao fórum de Campina Grande para protocolar uma petição como estagiário da Defensoria Pública. Um colega me viu lá em mangas de camisa e disse: - Ei, isso não é traje para o ambiente. Eu o vi sufocado pela insensatez de um paletó a trinta graus e perguntei se aquilo era o ultraje ao Ambiente. Mas, voltemos ao casório, que é de lá que vem a crônica de hoje. Quando veio o dia da festa, eu percebi que o mofo tinha ido além dos panos; estava em mim, que não sabia mais como me meter naquela indumentária de defunto bem comportado. Vesti a calça, ensaquei a camisa e, na gravata, deu um

Noves fora, 1 vertigem

01. Encarnei pela primeira vez no corpo de uma fêmea. Fui estuprada pelo macho-alfa, apanhei e morri de parto aos treze anos durante a segunda tentativa do bando de atravessar o Saara. 02. Reencarnei em um servo de Tebas durante a XVIII dinastia. Servi no palácio de Amenófis III e fui decapitado por um soldado de Aquenáton, por ter rejeitado o culto ao deus único. 03. No século VII a.C., fui sacerdote na corte do rei Josias em Jerusalém e compilei lendas antigas em prol da reforma monoteísta. Morri no exílio com o rei Joacaz, maldizendo o ingrato Javé. 04. Na quarta encarnação, meu espírito partiu-se ao meio. Uma banda foi eunuco durante a dinastia Han na China. A outra lutou com Aníbal por Cartago e perdeu; morreu escravo em Salerno. 05. Renasci pagão no fim do século IV e me converti ao cristianismo para tentar carreira no exército imperial. Fugi para Bizâncio após o saque de Roma e morri naufragado no mar Egeu. (uma banda) 06. Juntei-me

Notinha no calor da noite

Parece que estamos naquele momento crítico em que um dos cônjuges, cansado de relevar as traições do outro ao longo do tempo, arregala os olhos e descobre a meleca. O que as revelações de hoje provam, assim como as dos últimos (três, doze, vinte?) anos, é aquilo que se supunha: o Brasil é governado dos bastidores por esquemas criminosos. Esquemas que se reacomodam uns aos outros à medida que algum deles alcança pelo voto a liderança dos negócios. Se as acomodações se rompem antes da eleição, impeachment. E vamos nós mantendo com eles uma relação não menos ambígua de reacomodação: se o líder da vez favorece nossas convicções ou interesses, relevamos seu esquema. Assim o nosso parlamentarismo, enrustido e hipócrita. Disse há um ano e repito: sou suficientemente maquiavélico para relevar as manobras de quem preside a República com o intuito de se manter na chefia das organizações políticas. E digo isso porque penso que nossa esperança e nossa revolt

Meu querido Juscelino Kubitschek

Vovó Lozinha cultivava uma lista de defuntos queridos, pelos quais ela rezava diariamente antes de dormir. Quando eu morrer, ela dizia, a patota vai estar à minha espera no céu. Era uma lista que começava bastante doméstica, com pais, avós, tios e primos, avançava para amigos e agregados e daí ganhava a cidade e o mundo. Admitia até terceirizações. O parente de alguém muito chegado morria e o sujeito vinha pedir a vovó que rezasse pela alma do finado, pessoa boa e merecedora da graça divina. A alma logo entrava pra patota. Um artista de tevê batia as botas e uma nora ou um neto pedia a vovó que rogasse a Deus pela salvação daquela alma querida. E assim Zacarias e Mussum entraram na lista. Getúlio Vargas era o finado de número 50. Nunca esqueci isso porque, quando recitava o nome do velho, vovó completava com um graciosíssimo "os primeiros cinquenta". Como aluno e escriba de vovó, a certa altura me coube a tarefa de anotar os nomes. A

Só José

 Vovô se chamava apenas José. Um belo dia, a professora o chamou e disse que era hora de ter nome e sobrenome. Que tratasse com os pais, resolvesse logo o assunto. Em casa, a mãe liquidou o grave problema em um piscar de olhos: José Gonçalves Braga. E vovô voltou à escola, sobrenome no bolso, lição da cartilha na ponta da língua. - Mas assim não pode, falta o do seu pai. E vovô viu que ter nome e sobrenome não era coisa fácil. Levou o recurso pra casa e ouviu o martelo da mãe: então fica sendo José (de) Epaminondas Braga. Assim foi feito. Isso se passou quando vovô era criança, vivia com pais e irmão no sítio Picada e andava quilômetros de poeira e sol a pino pra ver o circo ou tomar a bênção ao coronel Peba. Ser só José não era fácil e ele tratou de ser também o sobrenome. "Tão Brasil!" - diria o poeta. Venceu outros quilômetros, fez a vida em Campina e cuidou de lustrar o Braga. Investigou a genealogia, arranjou um brasão e o

E se fosse com alguém seu?

Ouvi tantas vezes a pergunta que talvez ela já mereça alguma ponderação. Sem falar que os dias são de chacina em presídios, chicana em tribunais e suspiros por justiça a plenos pulmões. Sim, se alguém cometesse um crime contra a vida ou a integridade física ou moral de alguém que amo, eu ficaria triste, sentiria fúria e provavelmente desejaria retribuição olho por olho. E se a Justiça falhasse ou demorasse a punir ou ainda deixasse de fazê-lo em virtude da própria lei, eu certamente sentiria mais que justificado o desejo de vingança e maquinaria a desforra. Mas entre desejo e realização, vão alguns degraus de reflexão; a menos que já não se queira colher os benefícios da civilização e ainda que alto seja o preço para o bicho selvagem que nos habita. É por isso que um seria o meu sentimento imediato, outro seria o esforço para raciocinar a longo prazo. Ou não, porque dessas coisas só se sabe depois de ocorridas; e é tolice alardear o futuro. Mas não é

Uma corrida curiosa

 Dia desses, pedi corrida no über e fui parar na Grécia Antiga. Não que a viagem tenha sido tão longa, foram só uns dois ou três quilômetros do Tambiá a Manaíra; mas o motorista foi longe. Além de muito simpático, o rapaz era filósofo. Não desses de botequim, muito menos de YouTube. Filósofo profissional, com bacharelado na Federal e o direito, nos termos da lei, de filosofar. Mas, como da faculdade à realidade vai certa distância, o filósofo não engatou nos tortuosos editais de Pós e terminou num cargo comissionado de prefeitura, sem receber o salário há meses. Tem escapado da fome com o über e tão bem que já pensa em fazer do volante o ganha-pão. Vai longe o rapaz, porque conduz bem o carro e o papo. Vejam vocês o que ele me explicou. - O senhor talvez não saiba, mas a verdade é que isso aqui é uma ilusão. Belisquei o dedo. Ele foi ao ponto: - não, não, estou falando do movimento, a verdade é que não estamos indo de lugar nenhum a lugar algu