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Mostrando postagens de 2019

O sentimento da pátria

Não sei vocês, mas, de uns tempos pra cá, passei a sentir certo mal-estar quando vejo a bandeira do Brasil. Ela aparece e eu estremeço como um judeu na Alemanha de 33. Aí baixa aquela coisa fria no ventre, eu desvio o olhar e lamento. Quando criança, a bandeira me parecia tão bonita. E fácil de desenhar na escola; exceto, claro, pelas estrelas. Nosso céu, nosso ouro, nossas matas. E a bandeira, com a mistura de geometria e romantismo, apontando o desejo de conciliar o cálculo e a paixão, a nos consumir sem fim. Mas veio essa patriotice de quartel e a bandeira virou, sei lá, uma coisa ruim. Ou voltou a ser. Afinal, a República e seu pendão nasceram com o salvacionismo militar - agora redivivo. Tenho tentado compreender isso, indo lá para o começo da história. O Paraguai, a questão militar, a Igreja e o Exército como as instituições nacionais, antes mesmo do Governo. Ontem, ia juntando essas idéias na cabeça quando saí para almoçar e dei com um q

Duas notas

Durante algum tempo, Júlio César foi minha preferida das cinco ou seis peças de Shakespeare que li ou vi encenadas. Não por César, Antônio ou o povo romano, esses três fios explosivos por onde se tece a linha pública do drama. Mas por Bruto, o jovem Bruto, em cuja mente Shakespeare mergulha para nos dar o que interessa: o conflito humano. "O pobre Bruto em guerra contra si / esquece o amor devido aos outros homens" - eis a pedra que me parece angular. Por descender de quem expulsou o último rei de Roma, Bruto deve liderar a conspiração para salvar a República. Por amar César, entretanto, Bruto reluta em aceitar o encargo que os patrícios querem atar ao seu punho. O personagem do século XVI faz a figura histórica do século I a.C. encarnar o dilema moderno da emoção contra o dever. Vence o dever, mas não a República. E Bruto morre. * Mas eis que me chega às mãos o Romeu e Julieta traduzido por José Francisco Botelho para a Companhia das Letras.

Parábola da balbúrdia

01. No oitavo dia do quarto mês do primeiro ano, Jair chamou Vélez e disse: Você me arranja mais confusão que resultado. Ouvindo isso, o ministro voltou pra Bogotá.  02. Então, Jair consultou os astros e, do WhatsApp, surgiu um áudio que disse: Chama Abraão no mercado e confia a ele o comando da guerra. Imediatamente, Jair obedeceu. 03. No outro dia, Abraão veio até o presidente, ajoelhou-se aos seus pés e disse: Senhor, ouvi o chamado dos astros e estou aqui. Jair ficou tão comovido com esse gesto que chorou. 04. Então, disse: Você, que é pai de Isaac e avô de Jacó, cuide das nossas criancinhas e não as deixe mais cantar a Internacional nem as canções da Pabllo Vittar nas escolas. 05. Ouvindo isso, Abraão pediu permissão para falar com Paulo Guedes. Assim foi feito. E Paulo Guedes o mandou coordenar a estratégia com uma mulher de nome Elizabeth. 06. Passados alguns dias, Abraão foi a Jair e disse: Senhor, vamos estrangular o sistema e obrigá

Ode a Frederica

Não sei ao certo como e quando a gente começa a amar uma cidade. Sei que, no começo de tudo, odiei João Pessoa como um degredado odeia a terra para onde é despachado. E aqui vivi, durante anos, dentro de uma maleta de três palmos cúbicos, pronto para sacudir a poeira dos sapatos a qualquer milésimo de segundo e correr para o perdido lar. Era o banzo arrochando o peito e o calor soprando os fornos do Inferno no rosto. Era o cativeiro burocrático prendendo os passos e a casa de vovó chamando de volta à liberdade. Até que um dia descobri uma pracinha de Manaíra e botei na cabeça que, se eu morasse lá, seria menos infeliz. Demorou quase sete anos, mas me mudei pra cá. E sabem que mais? No dia em que entregou as chaves do apartamento, o senhorio me olhou nos olhos, estendeu a mão e disse apenas: Seja feliz. É um aluguel que até hoje pago sorrindo. Aí foi que alguma coisa aconteceu. O calor, o cativeiro e a saudade não se foram, continuam aí no meu ju

Parábola dos dois presidentes

01. Naquele tempo, o celular presidencial vibrou em plena madrugada. Escutando o barulho, a primeira-dama despertou e disse: Meu deus do céu, Jair! De novo?! 02. E o presidente da República respondeu: Desculpa, amor. Prometo que vou só desconectar aqui. Então, ele pegou o aparelho, olhou a tela e soltou um grande grito de horror. 03. A mulher ficou tão assustada que não conseguiu falar. Então, o marido disse: Jânio Quadros me mandou um zap! E, estendendo o aparelho à esposa, desfaleceu sobre ela. 04. Quando o presidente voltou a si, viu dois homens ao pé da cama. O mais velho bateu continência e disse: Senhor, sou da Abin e verifiquei o celular, a mensagem é de Jânio. 05. Então, o mais novo se aproximou, coçou a perna e disse: Senhor, vim da parte de Olavo e consultei os astros. Os espíritos também se atualizaram e agora baixam pelo zap. 06. Jair tomou o celular na mão, ergueu-o para o alto e leu o que estava escrito: Também não nasci para pr

À espera do cônsul

O melhor emprego do mundo é o de cônsul da Suíça em Olinda. Quem me assegurou isso foi um daqueles artistas que andam pela cidade velha vendendo serigrafias coletivas. Vi o dedo do homem apontado para o sobrado que abriga o consulado da Suíça, pensei nos graves problemas de política internacional que as janelas encobrem e concordei com cabeça de lagartixa. Chegados aos Quatro Cantos, vi um sobrado à venda e pensei que, se a Suíça tem lá um consulado, Campina Grande já merece o seu. A idéia me caiu como semente.  Então, com a desculpa de economizar dinheiro para negócios diplomáticos futuros, dispensei as serigrafias do bom mercador e tomei o caminho da praça João Alfredo. Ia descendo a Prudente de Moraes quando outra placa - dessa vez, por conta própria - me chamou a atenção. O consulado do Uruguai. Eis aí o verdadeiro bom emprego. O sobrado da Suíça é tímido, quase aberto para a rua e não deixa ao cônsul outra saída, quando chega o Carnaval, se

Virando a folha

Estava em casa, fazendo o almoço, quando o celular tocou. Vi o 011 na tela e me preparei para a moça do cartão de crédito ou o rapaz do novo plano Vivo. Atendi pronto pra iniciar o Quebra-Quilos. Por que perder tanto tempo com quem não quer mais minutos ou só aceita outro cartão sob tortura?! Mas a voz do outro lado anunciou:  - Aqui é do Datafolha... Durante anos, via o 011 surgir na tela e corria para atender na esperança de que seria Luiz Schwarcz oferecendo contrato e amizade. Alô, Thiago, li seu livro etc. e tal.  Até que me conformei: só a moça do cartão e o rapaz da Vivo se interessam por mim. E passei a papear com uma e outro. Mas boa vontade é coisa de que não se deve abusar. De modo que a moça do Datafolha me apanhou com os cachorros na ponta língua. E me desarmou fácil, fácil. Queria minha opinião sobre a Folha de S. Paulo. Vibrei de emoção. Assim como Carlos Heitor Cony foi o cronista que passou de pai pra filho, a Folha foi

Fugere urbem

Dia desses, recebi o anúncio de um edifício lançado em João Pessoa. Coisa bonita, chamativa, fácil. Meia dúzia de cliques e o corretor já me aguardaria dia tal, hora tal. Por que não? Dei os cliques e, chegado o dia, fui bater no local marcado. Cenário de Versalhes, tratamento de Luís XVI. Cortesias, salamaleques, sala vip, circo armado pra fazer de mim o Rei. - Mas, e o apartamento? - perguntei. - Isso vem depois. Porque o agora era Versalhes. Era a pompa com que me envolviam na promessa de pertencer a um seleto clube, feito de spas, shoppings, lounges, piscinas e espaços gourmet. - E o apartamento? - insistia. - Se o senhor aceitar ver a proposta, marcaremos uma demonstração de duas horas pra falar sobre isso. Aceitei. E veio a proposta. Quatro vezes e meia o preço do apartamento de mesmo tamanho que comprei oito anos antes, sem que os custos tenham subido sequer duas vezes. Proposta impressa, ganhei o benefício de três noites com o travesseiro pra pe

Uma questão de vista

Jorge Amado é desses autores a que tenho ido por partes e de diferentes formas ao longo da vida. Talvez por ser vasta sua obra, talvez porque leio de modo muito bagunçado. Nos anos 90, havia quase nada dele entre os livros lá de casa ou dos meus avós. Mas havia o romance completo de Machado. E foi o Bruxo quem um belo dia me pegou de jeito. Assim é que só li, quando adolescente, o que a escola obrigou a ler. Tenda dos Milagres, Quincas Berro d'Água e não lembro se mais algo me atiçou as ereções e os desejos. Já na faculdade, veio a greve. Greve longa, de meio ano, a melhor temporada destes meus anos jurídicos e judiciários, porque eu não tinha compromissos e só tratava de literatura. Jorge Amado morreu por esses dias e algum jornal fez circular uma edição de Dona Flor. Arranhei umas páginas, não engatei na segunda e terminei me transformando com o Jesus de Saramago. Os anos 10 já estavam no horizonte quando voltei ao baiano. Fui lá para o