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Mostrando postagens de abril, 2020

60 anos

Brasília já rendeu de tudo um pouco ao Brasil. História, geografia, dívida pública, grilagem, anedotário, cada departamento da vida nacional teve seu quinhão na capital. E muito se disse, entre lenda e verdade, sobre por que levar o governo para o cerrado. José Bonifácio, a Constituição, empreiteiras, montadoras, porcentagens, Toniquinho etc e tal. Gosto de pensar em uma das justificativas de Juscelino: despachando do Catete, o presidente da República terminava sendo, em não poucas ocasiões, apenas o prefeito do Rio. Uma manifestação contra o aumento da passagem e o vice ou algum general já mandava fazer o terno de posse. A propósito, Autran Dourado conta uma boa em Gaiola Dourada. Secretário de Imprensa de JK, o escritor mineiro recebeu de Darcy Ribeiro um pedido de audiência. Darcy queria propor ao presidente a criação de uma universidade na nova capital. Ao saber do plano, Juscelino recusou. Não queria estudantes nem militares ameaçando derrubar o governo em cad

10 dias

Era o que faltava para o fim do trabalho remoto, mas o tribunal o prorrogou por tempo indeterminado e, agora, o que tinha prazo para acabar, parece se tornar mero horizonte. Mas estar em casa é bom. Depois de anos ausente, voltei a adubar o quintal e, não demora muito, lanço horta onde um dia nasceu, cresceu, frutificou e morreu o velho abacateiro. Algumas amigas mulheres vêem nisso nada mais que o pretexto para estar sob os cuidados da mamãezinha. Já eu vejo, no que elas vêem, nada mais que os ecos do machismo. As configurações patriarcais não foram integralmente baixadas na casa em que me criei. Havia essa ou aquela idéia sobre a virgindade das filhas ou a macheza do varão. Mas, na casa da minha infância, pai e mãe desempenharam papéis nada tradicionais. O pai sempre foi a figura do afeto e do cuidado, o abrigo contra o Ordem e Progresso materno. Era meu pai quem nos acordava pra escola, preparava o café, repassava as lições, levava para os compromissos, deixava

12 dias

O domingo foi de cidadãos CBF, numa mistura medonha de Padre-Nosso com AI-5, pedindo golpe militar. Ainda é um delírio, mas tem a liderança da J. M. Bolsonaro & Filhos Ltda. Isolado da política, da ciência e do bom senso, o presidente não tem nada a fazer senão continuar sendo o que sempre foi: um agitador de meia-tigela, municiado de retórica fascista. Por enquanto, podemos dormir tensos, mas não desesperados: Congresso, Judiciário, imprensa e senhores do PIB recuaram da onda que desaguou no bolsonarismo. Mas ela fermenta em praça pública e faz estragos a olhos vistos em setores da Administração como Educação, Ciência e Cultura - não à toa, os que lidam com o poder simbólico. Sem nenhuma liderança de oposição firmemente estabelecida no cenário, à esquerda ou à direita, para daqui até 2022, Jair Bolsonaro ainda reina sozinho - e é aí que mora o perigo. Passada a pandemia e controlados seus efeitos econômicos, se a aliança de Guedes com Rodrigo Maia continuar p

14 dias

Arroz, goma, feijão. Ovos, leite, queijo. Suco, iogurte, requeijão. Alho, cebola, azeite. Laranja, manga, mamão. Quando chegou nas cervejas, a mulher do caixa perguntou: - Vai dar festa no meio dessa pandemia? Um cachinho de nada e ela pensou em festa grande, com live de Gusttavo Lima e pancadão nos tímpanos da vizinhança. Não, não, são pra minha irmã rever a final da Copa de 70. - E tão reprisando é? Não sabia. Lá em casa, só entra Jesus. Fiz cara de lá-vem-bomba, mas a mulher terminou de passar as cervejas em silêncio, deu o enter e me apresentou a conta. Enquanto eu embalava tudo, ela se aproveitou pra dar o bote. - Satanás conseguiu o que queria? - E o que ele queria? - Fechou as igrejas. - Mas o vírus se chama covid-19, não? - E por trás do tal covid, quem está? Satanás, ora! Vi ali uma excelente oportunidade de ter as lições de demonologia que o catecismo me negou e, aproveitando a ausência de fila, dei corda à pastora. E esse Satanás, co

16 dias

Às seis da tarde, que podia ser noite, fosse o mês de inverno, eu estava banhado por ordem inapelável de vovó, quando o rádio de vovô dava a senha para o cuscuz com leite e açúcar. Decolores / Decolores é a primavera florindo caminhos / Decolores / Decolores são todas as flores são os passarinhos / Decolores / De colores é o arco-íris, caminho de luz... Mas isso era trinta anos atrás. Hoje, quem tocou às seis foi o telefone fixo. Não sei vocês, mas eu sempre espero emoção quando o fixo toca. Um agiota, um trote, uma alma penada? - Residência de lady Fook. James, o mordomo. Do outro lado da linha, a voz fica suspensa, os pelos da nuca se arrepiam e o infeliz pensa no tamanho da conta, ao fim do mês, por causa de um minutinho de equívoco pra Inglaterra. - Boa noite. Aqui é o Ministério da Saúde. Alto lá, que hoje o suspense foi meu! O governo me ligando, e não era o Ministério da Fazenda pra cobrar a declaração do ano, nem um olavista maluco com rol de censuras

18 dias

É o que falta para o trabalho remoto acabar, segundo a previsão do tribunal. E o Smiles, farejando oportunidades, mandou um e-mail: As cidades terão outro significado. Com ou sem quarentena, viajar não vai estar nos planos nem nos bolsos de muita gente em maio, junho, julho... mas toda gente já vai planejando isso ou aquilo pra depois da pandemia. É o caso dos profetas que asseguram: voltaremos para um mundo diferente do que deixamos. Isso me lembra vovô quando dizia que o mundo não foi o mesmo depois da Guerra. Mas a vida dele não mudou muito de abril pra agosto de 45. Levou 4 anos pra deixar Cajazeiras, outros 4 pra abrir negócio em Campina, outro tanto pra descobrir a Coca Cola em Recife. Quando se deu conta de como e para onde o mundo mudara, Stalin já fora desnudado, Churchill virava um punhado de ossos em cova inglesa e o muro estava erguido em Berlim. Sim, os processos em 2020 são mais velozes que os de 45; mas em 1945 também eram mais rápidos que em 1870.

Vigésimo dia

História, 6 de abril de 2020. Prezado Jair Vai desculpando a sem-cerimônia com que te dou este pito, tchê, mas por enquanto os avanços tecnológicos daqui ainda não alcançam os daí. Hei, portanto, de ser curto e grosso. Vago abichornado desde quando notei que deste para posar no gabinete do Alvorada com uma foto do Juscelino Kubitschek às tuas costas. Bah! Que tresloucamento é este?! Admito que o governador foi um dos poucos que me apoiaram na hora da morte, mas verdade seja dita: o Juscelino foi cassado e saiu com fama da ladrão. Que tu tens nos miolos? Tira logo o Juscelino e me põe aí como teu guarda-costas. Lembra que por causa de um guarda-costas naufraguei. E acolhe o conselho que te dou: família no palácio é ratoeira. Tive formação militar, sempre desconfiei dos políticos e, uma vez alçado à magistratura máxima do Brasil, contei com os serviços das melhores mentes da época no meu governo. Fui golpista, ditador e presidente democrático, aprendi a desv

Décimo oitavo dia

Em razão do estado de calamidade e dos decretos que suspenderam o funcionamento regular do comércio, anunciamos a todos o encerramento das nossas atividades. Mais cedo ou mais tarde, fulminado pela pandemia ou pela teia de aranha, o Correio da Paraíba terminaria tendo o mesmo fim de O Norte, Diário da Borborema e Jornal da Paraíba. Foi com as palavras acima, porém, que o Correio anunciou a última edição. Li o comunicado e viajei a 2001. O século começava e eu, ingressando na faculdade, queria ser escritor. Volta e meia, rabiscava uma crônica, fazia duas cópias e, ao sair do velho Anita Cabral, passava pelas redações do Correio, na Vidal de Negreiros, e do JP, na Juvino do Ó. Nunca me publicaram, mas, às vezes, não sei se num gesto de piedade ou tortura, os editores me admitiam lá dentro e deixavam respirar, por um minutinho, a redação de jornal. Já formado e trabalhando - em desvio de função do espírito - em um tribunal, tentei pela última vez publicar no Correio.

Décimo sexto dia

Nem sei de onde veio, sei que uma moleza bateu do meio pro fim da tarde de ontem e, à altura do jantar, o cansaço era tamanho que a população de casa estremeceu. Tem febre?! Nada de febre e, graças a isso, fui poupado de me isolarem no quarto, passarem a chave e a jogarem na fossa. Mas foi para o quarto mesmo que me retirei. Deitei, dormi - e sonhei. Não é todo dia que se tem sonho completo, desses com introdução, desenvolvimento e conclusão, como se fosse uma redação escolar. E ainda por cima com figurões da História. Aliás, minto. Volta e meia, eu me vejo metido, em sonho, dentro de alguma dessas confusões épicas. Já estive na Revolução Cubana, na Segunda Guerra, na Batalha das Tainhas. Pena que não sou eu quem os escolhe; são eles que, livres e soltos, vêm a mim. Já tentei muito ir a algum Conclave. Chego a ler sobre o de 1903, antes de dormir, pra ver se forço o sonho dos sonhos. Em vão. O sonho é soberano. E, ontem, sem dar motivo, ele me levou ao Rio de

Décimo quarto dia

021 - há dez anos, eu via isso surgir no celular e pensava na ligação da grande editora; hoje, sei que é um trabalhador de banco ou telefonia, sob a pressão torpe de alguma meta. Mas, de umas três ou quatro semanas pra cá, quem tem me ligado sem trégua é O Globo. A cada ligação, outra voz; a cada voz, o esforçado teatro de quem precisa vender o peixe. - Olhe, moço, escute bem, não vou reconsiderar o cancelamento da assinatura em hipótese alguma, tá certo? O melhor pra você é - Mas o senhor é especial etc. e tal. A inflação e a reforma da Previdência corroeram minha receita. Sobreveio o vírus, a recessão bateu à porta. Não tive outra saída senão cortar dos pés à cabeça. Ficar de tanga. - Podemos fazer um preço assim e assado. - Não, não e não. Não reconsidero. E não me liguem mais! Deixaram de ligar. Uma, duas, três jornadas, e comecei a sentir falta. Não é todo dia que alguém dá o melhor de si pra passar manteiga da boa num pão que já começa a mofar. A

Décimo segundo dia

Depois de onze domingos, um domingo. Por volta das três da tarde, começou a chover. Relâmpagos, trovões e aquela vontade de tomar café lendo algo mais forte que a borra. Coei o pó, servi o café numa velha xícara de ágata e, ainda mais trancafiado pelas águas, sentei à mesa da cozinha com um dos livros que havia metido na mala em João Pessoa. De repente, senti-me transportado a uma ilha, não sei se deserta, e ouvi uma voz de trombeta anunciando às minhas costas: "Escreve o que direi e envia às sete congregações!" A voz vinha de um velho com olhos de fogo, pés em brasa, língua em forma de espada e sete estrelas na mão. Sua mensagem era a de um juiz severo às portas do cárcere. Terminadas as cartas, desceu do céu um trono, em torno dos quais outros vinte e quatro tronos. Em cada qual, um velho barbudo. Então, surgiram quatro criaturas e um cordeiro. O cordeiro tomou do primeiro velho um livro fechado e selado. À medida que rompia os selos, cavalos começaram