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Mostrando postagens de 2018

Coisa de menino

Fuga de prisão é coisa séria. Que o diga a fuga recente da penitenciária de João Pessoa. A segurança era máxima, mas a porta foi pelos ares, um PM morreu e uma centena deu no pé com dificuldade mínima. Mal começou a caçada, veio o pânico no zap. Tiros em Manaíra, captura no Bessa, carreira no Altiplano. Coisa de cinema. Ou coisa de infância. Quando eu era menino, Pablo Escobar virou fugitivo da Interpol e ganhou (ainda mais) os jornais. Naquele tempo, o terror de quem andava nas ruas de Campina Grande era dar com um trombadinha na esquina. O que já era terror suficiente, mas não passava de um terror local, sem o glamour da fuga internacional. Já Pablo Escobar, embora fugisse dentro de casa mesmo, era um caso de mobilizar polícias e diplomacias. E dava na tevê, não em patrulha policial, mas em horário nobre, com Cid Moreira, Boris Casoy, Lillian Witte Fibe. Eu acompanhava aquilo tudo e tremia. E se ele tomasse um avião, entrasse no Brasil sem ser visto, viajasse

Alvorada

A insônia tem seus ritos e não sou eu, que tenho lá uma queda por rituais, quem vai ludibriá-los. A coisa toda começa antes mesmo de o sujeito tomar dois dedos de água e ir pra cama. Não sei que comichão vai invadindo o corpo e fazendo o inocente pensar em tudo o que pode distrai-lo do sono: a fome do cão, o trabalho por concluir, as camisas a passar... Mas a pessoa sabe que está saciada, que o trabalho pode esperar pela aurora e que as camisas estão todas as noites por passar. Toma, então, a decisão: bebe água e se deita. Por quê? Para quê? São onze e meia, quase doze horas da noite e o camarada sente que já passa da hora de dormir, por isso teima, e lima, e sofre, e sua, mas a pepita não vem. Nem virá. O que vem é a consciência de que não se vai dormir. E logo em seguida, ai meus deuses!, a percepção de por que não se vai dormir. Eis o ponto crucial da insônia. É preciso aceitar sua chegada, é preciso aceitar seu motivo. E deixar que ele salte do c

O Brasil que eu quero

A revolução começa na sala de espera dos consultórios médicos, bem na hora que a secretária liga a tevê naquele programa mais besta que piada de doido ou português. Um paciente pede que mude pros documentários da TV Escola, outra entra na fila com o DVD de A Grande Beleza e um terceiro implora que troque a revistarada toda pela 451. Só nessa brincadeirinha, meia dúzia já se cura da dor nos trigêmeos antes mesmo da consulta, vai pro trampo mais alegre e passa o resto do dia sem baixar desgraça no zap. A revolução se espalha daí pra sala de casa, bem na hora que o canalha que berra no programa policial ou no púlpito de falso profeta começa a encher os bolsos e sugar as mentes. O filho bota um Waldir Azevedo pra tocar na vitrola, a filha abre uns bagulhos de Jorge Amado pra ler à meia sola e os pais se perguntam de onde foi que saiu tanta imaginação. Daí para os salões de baile, a revolução se alastra mais veloz que num clique e estoura bem na h

Sobre urros e cálculos

 Não sei por que falha de caráter, tenho o hábito de ler biografias. Chego a preferir uma gorda biografia em dois tomos de letras miúdas a um bem costurado livro de poesia. Anos atrás, conversei com uma historiadora profissional que fez caras e bocas quando lhe confessei a preferência. Tentei me explicar com argumentos de ordem psicanalítica. Em vão. Tudo que obtive da doutora foi uma torcida inapelável de nariz. Desde então, esse nariz troncho me aparece na mente quando tiro uma biografia da estante e estiro os pés na rede. Por esses dias mesmo, ele esteve comigo à medida que avançava com dificuldade pelas trincheiras da vida de Churchill segundo Martin Gilbert. Dois tomos, letras miúdas. Historiador profissional, Gilbert tenta reconstruir não tanto os fatos, mas a percepção que Churchill tinha de si próprio como agente dos fatos. E faz isso por meio de atas e cartas. O esforço é hercúleo, o resultado é cansativo.  Acompanhei o menino Winston car

Sobre um idílio

Já li de tudo um pouco: que 'Me Chame pelo Seu Nome' é uma história de amor, um drama gay ou a celebração nostálgica dos anos 80. Só não li o que o filme me pareceu. Imaginem vocês. A esposa de um professor universitário herda uma casa de campo na Itália e o casal passa as férias de verão lá com o filho de 17 anos, um aluno americano e amigos em trânsito. E o que eles fazem? Tomam banho de sol, lêem poesia, degustam frutas, tocam piano, passeiam pelo campo, discutem filologia, mergulham no lago, catalogam achados arqueológicos, fazem sexo. Tudo se desenrola sem pressa e com brio. A televisão é um detalhe no canto da parede, o telefone é um aparelho preso à tomada e a cidade mais próxima está fechada para o ócio. O cenário político da Itália dos anos 80 vem à tona e causa certa inquietação, mas o que empolga os convivas é a descoberta de restos de estatuária antiga no mar ali perto. Sim, é um filme que fala de coisas antigas, tão antig

Uma lição em 89

1989 foi aquele memorável ano em que 22 pessoas disputaram a Presidência do Brasil, 3 milhões de berlinenses derrubaram um muro e meia dúzia de pupilos foi alfabetizada por dona Lourdes Pedrosa. Eu era um dos pupilos e lembro muito bem como os fatos históricos se transformavam em fatos escolares no pequeno complexo de sala, pátio e biblioteca nos fundos da casa da professora. A meninada havia organizado um exército para comandar o pátio. Quando os ventos da mudança sopraram no país e no mundo, uma revolução derrubou a junta militar e proclamou a democracia. Major na junta, fui eleito vice-prefeito em 1990 e, no ano seguinte, prefeito do pátio. Quando Collor caiu, os três vereadores decidiram que era hora de agir e votaram meu impeachment.  Mas era de 1989 mesmo que eu queria falar. Naquele ano, outro fato fundamental se deu entre a meninada do Instituto Pedrosa: descobrimos que Papai Noel não existe, mas as classes sim. É que as férias de verã

E o Rio continua sendo

Dois ou três amigos me perguntam sobre o que penso da intervenção no Rio e eu penso que, além de ser um desconfiado, estou apenas mal informado pelos jornais. Os jornais me dizem, por exemplo, que houve doze ações do Exército no Rio desde 2008 e o comandante Eduardo Villas Bôas avalia o resultado como desgastante e inócuo.  Quero então pensar que o Exército articulou com o governo a substituição de ações policiais pontuais pela intervenção direta e sistemática no comando do aparelho de segurança. Mas aí vem o general Braga Neto e diz que acaba de receber a missão e está planejando como cumpri-la. Uma decisão dessa envergadura não foi integralmente traçada? Os jornais também me trazem relatos de moradores de comunidades dando conta de que as doze ações de garantia da lei e da ordem não separaram bandido de gente de bem. Invasões de domicílio, restrições às liberdades fundamentais, tratamento humilhante e estupro compõem o rol das violações aleg

Churchill literário

Muitas questões irrelevantes me inquietam e uma delas é esta: por que diabo tenho uma queda por Winston Churchill, se sou um pacifista e de britânico não tenho nem a Escócia? Por muito tempo, achei que isso era culpa daqueles livrinhos com a biografia de grandes líderes que vovô José me fazia ler na infância. Mas já li tanta coisa mais adulta depois disso. E sempre me pego pensando que, se eu fosse transportado para a Inglaterra de 1938, provavelmente apoiaria a paz de Neville Chamberlain, e não os brados de guerra de Churchill. Por que, então, essa irresistível tentação de me informar sobre o homem? Mais que isso, por que essa curiosidade intelectual que, no fundo, tem o irracional quê do fascínio? Não sei se tenho caminhado em direção a uma resposta ou se, muito melhor que isso, tenho aprimorado minhas perguntas. Mas sei de uma coisa que divido aqui com vocês. Nos últimos anos, parece recuperar corpo certa tendência a tratar do Churchill literári

Cony cansado

Carlos Heitor Cony vinha cansando. Suas últimas crônicas pareciam cafezinho requentado com a própria borra. Ainda assim, eu gostava de ter dois dedos de prosa com elas. Ele era o caso do cronista que passou de pai pra filho. Meu pai o lia desde os anos 60. Era e é fã daquela combinação de humor ácido e desencanto com erudição de seminarista. Não lembro ao certo quando foi que ele me passou o gosto. Na verdade, parece que desde sempre Cony esteve entre nós, como um amigo da família que vem papear no almoço. Ainda hoje, quando me liga entre o finalzinho da tarde e o comecinho da noite, meu pai pergunta: - Leu Cony por esses dias? E dá uma gargalhada comentando esse gracejo ou aquela tirada que, de repente, espantam a náusea e o tédio. Eu rio junto, com aquela risada que só Nelson Rodrigues me tira. Tudo bem que a reputação literária de Cony se firmou no romance. Mas, cá entre nós, tenho uma preguiça danada de ler romances. Prefiro um calhamaç

Contra o calor do zap

Vocês vão me dizer que sou ranzinza, e eu não lhes tiro a razão. O fato é que, coisa de uns seis meses atrás, bateu não sei que revolta e eu me retirei dos grupos de whatsapp. Não de todos, que estou longe de ser um radical. Mas só fiquei na meia dúzia que congrega os íntimos, os que moram longe de mim e os que não fazem relatório até do espirro. A coisa toda foi indolor e, exceto por um ou outro amigo receoso de ter me ofendido com o papo de mesa de bar, ninguém deu conta de haver menos um naquelas muvucas. Mais que isso. Também avisei aos amigos que não discutiria mais nada sério pelo zap e, se alguém insistisse nisso, eu chamaria para um drink ou deixaria o sujeito falando sozinho. Agora, se vocês me acharam ranzinza, eu só lhes digo uma coisa: a vida por aqui ficou tão mais feliz que já considero até a possibilidade de ir à praia e dar umas braçadas no mar. Talvez tudo isso não passe de um defeito meu, que não tenho paciência para telecomunicaçõe