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Mostrando postagens de 2020

Contra os vermes

Se tem uma coisa que gosto de fazer, é ir à farmácia. Não, minha jovem leitora, ainda não fiquei velho, embora esteja (contente) a caminho. Mas detesto sofrer e adoro papear. Lá vem a dor na cabeça, a inflamação na garganta, a infecção no intestino e uma passada no consultório, um pulinho na farmácia fulminam a dor antes do segundo pio. De quebra, o brinde: o bom e velho papo com @ atendente, que atualiza qualquer bom ouvido nas últimas novidades da comédia humana. Se a farmácia estiver vazia, então - que beleza! A farmácia é o xeque-mate ao milagre, o fim de toda e qualquer curandeirice. Nela, jaz a morbidez da cruz e nasce, com firmeza e altivez, a crença da humanidade no bem-estar. Ontem mesmo, vejam só, a faringite mensal me levou ao otorrino e, de lá, ao prazer. A farmácia inteira, com um trio de balconistas ávido por tagarelar, ao dispor da minha faringe. Enquanto uma das moças me atendia, o rapaz recebeu uma chamada. Sim, temos. Quantas caixas? Seis?! Agora mesmo, minha senhora.

Em torno da pizza

Por esses dias de muito iFood e pouca praça de alimentação, foi o entregador quem se encheu da falta de campainha no muro e esbravejou: que custa facilitar meu trabalho, gente?! Custa pouco, meu senhor. Mas custa sempre. Esse muro já viu campainhas dos mais variados formatos, volumes e timbres, mas nenhuma perdurou mais que o tempo do ladrão. Assim é que cansamos de fornecer mercadoria gratuita à feira de roubos & furtos e, não sem remorso, deixamos carteiros, entregadores e agentes da Sucam ao sabor dos pulmões. O bom homem aceitou a explicação e aproveitou para esticar a conversa. Falou, ou melhor, sussurrou que não desce da moto sem antes dar uma boa espiada nas copas das árvores. - Nunca se sabe, né? Vai que o ladrão lá está de esguelha, esperando a hora de dar o bote na presa. E o burro de carga aqui, já sem eira nem beira, fica sem besta nem frete! O ladrão nas árvores. Taí uma hipótese que nunca considerei, apesar de não faltar engenho aos ladrões que por aqui passaram nos ú

Uma reunião ilustre

- Celulares desligados?! - Sim, Senhor Presidente! - Câmeras de segurança também?! - Sim, Senhor Presidente! - Então, vamo começar e terminar logo essa porra, que tou apressado. - Posso começar, Presidente? - Manda ver, Paulo. Mete fundo. Soca com força! Ha ha ha! - A gente tá fazendo um puto de um trabalho pra implantar o capitalismo selvagem e você, Jair, tem contribuído bastante, desempenhando com perfeição o papel de bobo da corte. Não fosse essa gripezinha do caralho, a gente já taria bem mais homem-lobo-do-homem. - Perfeito, Paulo. Per-fei-to! Tem que acabar com essa Constituição comunista mermo, botar fogo no Congresso, com o Supremo e tudo e limpar a área pra tirar o sangue desses babacas aí que votaram, ou não, em mim! - Presidente, falando em limpar a área, eu acho que a gente deveria aproveitar pra derrubar a Amazônia inteira de uma vez por todas pra criar soja e plantar gado. - Isso aí, Ricardo! Essa porra aí de floresta, aquecimento global e ambiente é coisa que muito prof

Uma boa intenção

A coisa mais entristecedora do mundo, depois de uma live de Roberto Carlos e da musiquinha que toca em Chaves quando todos partem pra Acapulco e ele fica sozinho, é o saxofone. Teve razão Lygia Fagundes Telles quando pôs um saxofone nas mãos do seu personagem, digamos, mais esperto. Com que outro instrumento ele poderia fazer brochar o rival? Uma velha amiga costuma dizer que nada dá mais toque de classe a uma festa que - o saxofone. Já tentei por todos os meios sentir essa revelação, mas tudo o que sinto é danação. Estou lá, lépido e fagueiro, entre taças e petiscos, quando o saxofone invade o salão, como Lampião a Sousa dos anos 20. Vai-se a alegria, ficam os dedos nervosos sobre a mesa. Que me perdoem Ivanildo do Sax, Homer Simpson e Bill Clinton, mas sua arte nada mais fez, até aqui, que aumentar os lucros de psiquiatras e fabricantes de antidepressivos. Vá lá um tristofone na orquestra. Entra o fagote no primeiro compasso, vêm as flautas no segundo, soam os violinos, ribombam os t

20 bestidades atualizadas

01. Vovô Toinho aconselhava: organize sua vida até os 30, que depois disso vai tudo ladeira abaixo. Fui um adolescente impressionado por esta fatalidade. Depois me dei conta de que, quando vovô nasceu, a esperança de vida do brasileiro nem chegava aos 40; quando ele alcançou os 30, ela mal passava dos 50. Em 2020, o conselho de vovô está caduco. 02. Trabalho desde os 17 anos. Fui professor e advogado. Sou burocrata. À beira dos 40, estou farto de reuniões, processos e sistemas. Gostaria de ser Montaigne e me retirar para uma vida entre flores e livros no campo. Sem bichos, por favor. Mas as economias não me sustentariam por mais de um ano. E a situação previdenciária só piora. 03. Publiquei 4 livros de pouco valor artístico e ainda menos leitores. Sonhei com a glória literária e, após muita psicanálise no juízo, admiti e assentei que tudo não passou de uma extensão de delírios pretéritos. Agora, só escrevo crônicas e me sentiria realizado numa chácara em Bananeiras, com marido, vitrola

Triste e velho Brasil

Sérgio Moro deixou o Ministério da Justiça em nome da lei e da biografia. Foi o que ele alegou. Sua biografia, entretanto, já estava irremediavelmente danificada desde, pelo menos, novembro de 18. A princípio, considerei a Lava-Jato uma conseqüência possível do regime a que magistrados, promotores e procuradores foram submetidos a partir de 1988. Antes disso, a estrutura do Judiciário e certas funções do Ministério Público confundiam-se com o Poder Executivo. Não raro, juízes e promotores transitavam entre a toga e a tribuna. Com a Constituição, a autonomia de Judiciário e Ministério Público foi assegurada e as respectivas carreiras foram ou começaram a ser definitivamente apartadas da vida partidária. Vieram os concursos, mudanças na formação dos juristas e o clamor por servidores públicos conscientes e comprometidos. Tudo isso somado prepararia o terreno para uma mudança. E a mudança permitiria a atuação institucional de Judiciário e Ministério Público para, dentro dos limites legais

60 anos

Brasília já rendeu de tudo um pouco ao Brasil. História, geografia, dívida pública, grilagem, anedotário, cada departamento da vida nacional teve seu quinhão na capital. E muito se disse, entre lenda e verdade, sobre por que levar o governo para o cerrado. José Bonifácio, a Constituição, empreiteiras, montadoras, porcentagens, Toniquinho etc e tal. Gosto de pensar em uma das justificativas de Juscelino: despachando do Catete, o presidente da República terminava sendo, em não poucas ocasiões, apenas o prefeito do Rio. Uma manifestação contra o aumento da passagem e o vice ou algum general já mandava fazer o terno de posse. A propósito, Autran Dourado conta uma boa em Gaiola Dourada. Secretário de Imprensa de JK, o escritor mineiro recebeu de Darcy Ribeiro um pedido de audiência. Darcy queria propor ao presidente a criação de uma universidade na nova capital. Ao saber do plano, Juscelino recusou. Não queria estudantes nem militares ameaçando derrubar o governo em cad

10 dias

Era o que faltava para o fim do trabalho remoto, mas o tribunal o prorrogou por tempo indeterminado e, agora, o que tinha prazo para acabar, parece se tornar mero horizonte. Mas estar em casa é bom. Depois de anos ausente, voltei a adubar o quintal e, não demora muito, lanço horta onde um dia nasceu, cresceu, frutificou e morreu o velho abacateiro. Algumas amigas mulheres vêem nisso nada mais que o pretexto para estar sob os cuidados da mamãezinha. Já eu vejo, no que elas vêem, nada mais que os ecos do machismo. As configurações patriarcais não foram integralmente baixadas na casa em que me criei. Havia essa ou aquela idéia sobre a virgindade das filhas ou a macheza do varão. Mas, na casa da minha infância, pai e mãe desempenharam papéis nada tradicionais. O pai sempre foi a figura do afeto e do cuidado, o abrigo contra o Ordem e Progresso materno. Era meu pai quem nos acordava pra escola, preparava o café, repassava as lições, levava para os compromissos, deixava

12 dias

O domingo foi de cidadãos CBF, numa mistura medonha de Padre-Nosso com AI-5, pedindo golpe militar. Ainda é um delírio, mas tem a liderança da J. M. Bolsonaro & Filhos Ltda. Isolado da política, da ciência e do bom senso, o presidente não tem nada a fazer senão continuar sendo o que sempre foi: um agitador de meia-tigela, municiado de retórica fascista. Por enquanto, podemos dormir tensos, mas não desesperados: Congresso, Judiciário, imprensa e senhores do PIB recuaram da onda que desaguou no bolsonarismo. Mas ela fermenta em praça pública e faz estragos a olhos vistos em setores da Administração como Educação, Ciência e Cultura - não à toa, os que lidam com o poder simbólico. Sem nenhuma liderança de oposição firmemente estabelecida no cenário, à esquerda ou à direita, para daqui até 2022, Jair Bolsonaro ainda reina sozinho - e é aí que mora o perigo. Passada a pandemia e controlados seus efeitos econômicos, se a aliança de Guedes com Rodrigo Maia continuar p

14 dias

Arroz, goma, feijão. Ovos, leite, queijo. Suco, iogurte, requeijão. Alho, cebola, azeite. Laranja, manga, mamão. Quando chegou nas cervejas, a mulher do caixa perguntou: - Vai dar festa no meio dessa pandemia? Um cachinho de nada e ela pensou em festa grande, com live de Gusttavo Lima e pancadão nos tímpanos da vizinhança. Não, não, são pra minha irmã rever a final da Copa de 70. - E tão reprisando é? Não sabia. Lá em casa, só entra Jesus. Fiz cara de lá-vem-bomba, mas a mulher terminou de passar as cervejas em silêncio, deu o enter e me apresentou a conta. Enquanto eu embalava tudo, ela se aproveitou pra dar o bote. - Satanás conseguiu o que queria? - E o que ele queria? - Fechou as igrejas. - Mas o vírus se chama covid-19, não? - E por trás do tal covid, quem está? Satanás, ora! Vi ali uma excelente oportunidade de ter as lições de demonologia que o catecismo me negou e, aproveitando a ausência de fila, dei corda à pastora. E esse Satanás, co