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Mostrando postagens de 2016

Na modorra de trezentos verões

De repente, subo a serra e encontro Campina Grande como se ela tivesse dado um salto para julho. Céu de chumbo, chuva nos telhados, vento fresco pela janela. Se eu tivesse nos pulmões a força de um furacão, sopraria estas nuvens para Boqueirão e as manteria lá, pagando por sua ausência prolongada, até julho de fato chegar. Mas não tenho; como não tenho a força da oratória para arrebatar quem já padece ou quem brevemente não mais poderá se esconder em poços e caixas d'água. Tudo o que faço é botar os violinos do concerto duplo de Bach pra me embalar na quietude de uma manhã sem passado nem futuro que venham lembrar suas faturas. E lá vai um violino fugindo do outro, como os deuses vão da humanidade ou os amados dos amantes ou ainda a sala de mim mesmo, até que os tímpanos vibram: - Tá faltando água. Vai comprar? É Gerusa, a sábia de Santa Terezinha, sem deixar de lado as velhas convicções: - Hoje até que a música combina, mas quando o céu abre

Ouvidos na torneira

Se a justiça fosse mero silogismo, o mundo inteiro iria às urnas depois de amanhã para escolher quem vai ocupar os jardins da Casa Branca e os quintais alheios pelos próximos quatro anos.  Em uma democracia, diríamos nesse silogismo, o poder é exercido por representantes de quem a ele se submete, o mundo inteiro está submetido à marinha de guerra de Washington; logo... Mas a justiça é um produto precário e simbólico de conflitos, acordos e traições; não se arranca facilmente de quem tem o poder, nem se conquista por meio de qualquer trocadilho barato. Não escolheremos, pois, entre elefantes e burros, mesmo que nossas empadas e coxinhas sejam devassáveis pela Agência de Segurança Nacional e estejam ao alcance do Comando Militar Sul. Seria, entretanto, um exercício de divagação histórica (daqueles pouco recomendáveis e muito deliciosos) imaginar como seria se o planeta inteiro fosse sacolejado por um hiper Édito de Caracala. Já escuto a pergu

Segredo de elevador

Dia desses, tomei o elevador em direção a uma tarde de suplício burocrático e dois colegas entraram nele no andar seguinte. Estávamos no térreo; eu vinha do subsolo e desceria no 1º andar. - A polícia pegou os bandidos do assalto. - E o dinheiro? - Ninguém sabe, ninguém viu. - Ora ninguém sabe! E pra que serve um alicate? -  - É só me dar um cabra desse que eu arranco a verdade. E com muito gosto! O elevador estancou, a porta demorou a eternidade de cinco segundos pra abrir e eu saltei com o desespero de quem não tem encontro marcado com o alicate, mas vai encarar o expediente. Três anos atrás, visitei um museu da Inquisição. A visão daqueles instrumentos de tortura - tão inofensivos na Córdoba de 2013 quão terríveis na Sevilha de 1482 - foi das piores que já tive. A pera da angústia, o estripador de seios, a cadeira de pregos, o berço de Judas; era tudo tão cruel, ainda que feito em nome de Deus, que não se pode aceitar um reles alicate em

Encontro com o espelho

Se eu fosse cientista político, dividiria os candidatos a cargos eletivos em dois grupos: o dos que disputam pra valer e o dos que pensam fazer a mesma coisa, mas estão só se divertindo. Ou não. Se eu fosse cientista político, faria pesquisas criteriosas, sondaria sutilezas mil, transformaria os resultados em gráficos e escreveria artigos para o Lattes, daria entrevistas para a tevê. Ainda bem que não sou. Assim, fico com a reduzidíssima visão dos dois grupos e lhes digo que a coisa mais fácil do mundo é distinguir a minoria seleta de um da maioria serelepe de outro.  Como? Quem dá o palpite? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três. Ninguém deu. Procurem o advogado - eis o segredo. Quem disputa pra valer só vai à Justiça Eleitoral pra protocolar o pedido de registro da candidatura. Daí em diante, deixa tudo por conta do bem pago advogado e só volta pra receber o diploma. O exato inverso se dá com a maioria serelepe de foliões de urna. O advogado do

Uma causa perdida

Não sei ao certo quando começou a acontecer.  Há quem diga que a culpa foi do tamagotchi, outros afirmam que o processo é mais antigo e só do orkut pra cá é que a coisa toda ficou evidente, e ainda há quem negue todo e qualquer sinal de colapso. O fato é que ninguém mais se dispõe a uma rodada de Sueca, a uma partida de Detetive ou a quatro horas de War para conquistar Europa, América do Sul e um terceiro continente de livre escolha. E eu suponho que tudo começou naquele verão terrível em que derrubaram o muro do Poço para abrir uma avenida. Dali em diante, fomos proibidos de freqüentar a calçada e condenados à tevê. O leitor exigente perguntará o que tem a ver a calçada com o fim dos velhos jogos. E eu responderei que nada, à primeira vista; como nada teve o cercamento dos campos com a obra de Charles Dickens. Mas para um lado vai a razão, para outro o coração. E até ficariam assim, sossegadamente desquitados, não fosse a vontade de embaralhar car

Notas à beira do 7 de setembro

O presidente da República foi à tevê no dia da posse e anunciou que a hora é de reconciliação. Nunca sei ao certo o que querem dizer os mais otimistas quando se referem à reconciliação no Brasil. Vamos ficar com os anos de Independência, que fecham em 194 daqui a quatro dias. Se reconciliar é tornar à conciliação primitiva, certamente o primitivo aí não se refere ao tempo em que engatinhávamos. Quem duvidar, pergunte a Libero Badaró ou escute o canto das garrafadas. Aqueles, foram anos de tumulto. Assim como os seguintes: liberais, escravos, conservadores na oposição, todos se revoltavam. O brasileiro mais ilustrado e esperto daquela época foi d. Pedro II, que criou a figura do chefe de gabinete (um prime minister tupiniquim) para levar os solavancos em seu lugar. Foi a sacada do século! O imperador se manteve no posto, inabalável, por 49 anos e só caiu por conta de uma fofoca do major Sólon. Isso mesmo. Porque os republicanos de vergonha esperav

Dois em um

Um dos maiores prazeres da vida - depois de descobrir (e não revelar) a idade das mulheres que detestam a velhice - é fazer a feira. Não sei ao certo por que, mas colho aqui acolá uma pista. Talvez seja mania de solteiro solitário. Indo ao mercado, fio laços com os funcionários, fico sabendo dos seus dramas, deixo-os a par das minhas queixas e assim nos ajudamos a seguir adiante. Vejam o caso de (ela pediu sigilo quanto ao nome), coitada. Dois rebentos sadios e um marido doente. Um dos filhos, logo o varão, largou o emprego em Mangabeira VIII e foi tentar a sorte no Rio. - Mas isso de tentar a sorte no sul não caiu em desuso?  - Pois é, eu disse a ele, mas... cabeça de jovem, né... vá entender! Depois que o filho partiu, passei a aliviar a amargura da mãe com chocolates. Ela retribui fazendo votos de que eu venda um milhão de livros e largue o emprego chato sem chatear mais uma mãe. E temos assim nossa comunhão dominical. Ou tínhamos. É que minha amigu

Notinha por amor à língua portuguesa

Cármen Lúcia é aquela ministra do STF que, certa vez, tomou a palavra numa sessão em que seus colegas discutiam a rebimboca da parafuseta, num português que o padre Vieira teria desancado no Sermão da Sexagésima, e disse: "Senhores, se nós ficaremos aqui debatendo madrugada adentro, vamos pelo menos aumentar a temperatura do ar condicionado, que eu estou congelando." Os ministros não riram (ministro de STF ri?), mas encerraram a sessão. Graças a Carminha, que ganhou minha admiração. E continua com ela. Afinal, também foi ela quem fez uma honrosa advertência em outra ocasião: "Isso de ser chamado de Excelência é perigoso, porque a pessoa termina acreditando que o é de verdade." Meu respeito a Cármen Lúcia, portanto. Assim como a quem opina que ela foi grosseira com Dilma, desde que a mesma pessoa diga que é grosseria pegar na língua de Temer por causa da mesóclise. Grosseria o cacete.  Agora, por amor à língua portuguesa, v

Últimas palavras

- Boa noite. - Boa. - O que o traz aqui? - Dor, muita dor. - Onde? - No dedo. Um corte. Na porcelana do vaso sanitário. - Vixe! Navalha na carne! - Hehe. Viu a peça? - Como? - Deixa. Nem eu. - E o dedo? - Não fui ao hospital na hora porque achei bobagem, mas a dor apertou, voltou a sangrar e, quando fui, passava de seis horas. - Não suturaram mais. - Não. Disseram que é lavar e proteger até cicatrizar. - Isso mesmo. Mais alguma coisa? - Sim, a dor. - ..? - Uma pomada, um analgésico, uma operação, alguma coisa pra - Lave, proteja e espere. - Mas já faz 10 dias, eu quero dormir em paz. - Quer um calmante? - Não, quero que ampute o dedo! - Boa noite, senhor. - Boa. Na calçada, considero cruzar a rua e acertar em cheio um carro veloz com o dedo indicador. Eu entraria triunfante na UPA. Agora sim, anestesie, opere, ampute, pelo amor de algum deus! Mas o carro parou antes da faixa. Efeito m

Lembranças inglesas

Por esses dias, andei me lembrando de um professor de inglês, nascido na Inglaterra, que certa vez me mostrou uma imagem da rainha, apontou as jóias da coroa, sorriu e disse mansamente: "todas roubadas". Na mesma época, um advogado paquistanês ajuizou ação em um tribunal londrino solicitando a devolução de uma das pedras surrupiadas ao seu país natal. A Justiça negou e o primeiro-ministro se pronunciou. "O problema em um pedido como esse é que você se dá conta de que, se atender ao primeiro, terá que atender a todos os seguintes e isso pode fazer com que, ao fim, a National Gallery fique totalmente vazia." Tudo isso me faz supor que o British humour não nasceu com os ensaístas nem se renovou com Fawlty Towers e Blackadder; talvez seja o resíduo de dois ou três séculos de pilhagem e pirataria mundo afora. Não sei se foi o Brexit que me levou a tais lembranças, mas vi uma cidadã inglesa afirmar que não sabia ao certo as implicações do que estava

20 bestidades em torno do cronista, à moda de uma corrente que vem do Vale do Silício

01. Nasci no século XX, mas fui educado no XIX. Vovô José rezava em latim, vovó Lozinha usava o português segundo Napoleão Mendes de Almeida e o Instituto Pedrosa não devia muito à escolinha do mestre Policarpo naquele conto de Machado. 02. Isso é humor, mas não é brincadeira. Eu já passava dos 10 anos quando aceitei, contrariadíssimo, que nasci em 10 de dezembro de 1983, e não de 1883. Vovó me deu uma cocada de leite extra como prêmio pelo gesto de viabilidade mental e social. 03. Falando em tudo isso, fui votar com vovó no plebiscito de 1993. Aliás, votei por ela. É que vovó tinha dificuldade de enxergar e me entregou a caneta; eu marquei um X na monarquia e outro no parlamentarismo, depois ajudei a depositar a cédula na urna. 04. Já vovô costumava me dar pra ler aqueles livrinhos com a biografia dos grandes homens da humanidade e dizia: “tem que ser um desses, meu filho!”. Até me contaminei com o delírio, mas nunca me achei suficientemente cruel pra ser grande. 05

Onde estão os pára-quedas?

Enquanto o leilão da presidência da República se desdobra, entre o Jaburu e a Jararaca, o cuspe e o descarrego, fico cá pregando metáforas com meus botões, não sei ao certo em qual das casas. E vejo a República surgir, das nuvens de ainda-verão, como um avião atravessando a turbulência em seus três eixos. De asa a asa, sacoleja a economia de um lado e chacoalha o sistema político do outro. Na longitude, a imprensa mete o nariz nas fendas do ar e, aterrorizada, a cauda da opinião pública grita. Lá dentro, na cabine infestada de comissários, pilot@ e copilot@ tentam se manter na vertical, disputam os pedais e o manche, ameaçam guinadas no leme ao nariz e à cauda, enviam torpedos. Balancem, asas! Descabele-se, tripulação! Vomitem, passageiros! Eis o avião da República, hoje como ontem. Obra extraordinária do engenho humano, tão forte quanto frágil, tão sustentável no ar quanto arremessável contra o mar, o monte, o vácuo das estrelas. Onde viajo? Por quem

Quatro elementos

Não vai fácil, nada fácil, a vida do cronista. Um impeachment aqui, uma ponte que cai no mar, um vice de sorte pelo caminho, uma rainha que faz aniversário acolá. Sorteio o tema, começo o texto e... Nada, nada fácil. O texto firma o pé, cruza os braços e, como menino birrento em dia de ir ao dentista, murmura e tritura, regurgita: aqui não saio, aqui ninguém me risca. Fosse isso apenas, haveria o consolo da poesia; mas, se o cronista desanda em vertigem, o poeta nem anda. Em pane. Em pane, o poeta. Canta, ó Musa, canta! Pior, muito pior que isso. O computador foi dormir e não mais ligou. E a crise no bolso, não melhor que na mente, vai deixando sem adjunto quem já se vê sem o objeto. E a cena se fecha em um riso. Mecânico e lambuzado de tinta, este riso. Riso da velha Remington Ipanema, que engole poeira num canto, e me diz: "foi você quem não quis mais". Vou até ela, faço a corte. Ela exige apenas tinta nova e flanela. Dou-lhe uma, também a s

Engano

Os leitores me perdoem por não dar outro pitaco neste momento tão grave da nação. Não, nação não, que isso cheira à pilhagem do século XIX. Neste momento tão grave do país. Melhor assim, não? Mas tenho meus motivos; dois, pra ser exato como um mais um. O primeiro é que também eu tenho meus ideais políticos, em nome dos quais ergueria bandeira e marcharia para o fim dos tempos. Mas são tão... tão... idiossincráticos - pra ter um pouco de boa vontade comigo mesmo - que só em romance ou epopéia eles merecem ser admitidos. Confessados, talvez seja a palavra mais pilhável. O outro é que gastei meus últimos insultos contra a mocinha do cartão de crédito. Não que a granada, neste tipo de guerra, perca o uso depois de atirada, mas conservo lá certas vaidades de escritor. Sem arma e armado de imaginação, calo na política, portanto. Não dou pitaco, mas tenho o pito. Qual? Ora, o que passei na mocinha do cartão de crédito. Essa história, eu lhes conto, por comp

Esboço para um drama político em três atos, que seria trágico se não fosse um possível fim cômico

Primeiro ato Cena 1 A princesa Vana sucede o pai, rei Lindu, e assume o poder. Com fama de independente e temperamental, manda decapitar alguns cortesãos corruptos do pai e recebe elogios no terreiro do Paço. Cena 2 Insatisfeitos, muitos cortesãos vão reclamar ao rei Lindu, que goza de retiro no campo e na praia com ajuda de súditos. O rei os convence de que a rainha está apenas querendo se afirmar. Cena 3 A rainha Vana faz manobras arriscadas na economia e continua desagradando os cortesãos do pai. Surge insatisfação popular, a rainha tenta responder, mas os cortesãos escondem os decretos. Segundo ato Cena 1 A rainha enfrenta um plebiscito sobre sua permanência no trono. Enfraquecida pela economia e debilitada por escândalo de furto na cocheira real, pede ajuda aos cortesãos do pai que evitava. Cena 2 A rainha Vana assina lei que promete benevolência com quem delatar esquemas corruptos no Paço. É confirmada no trono, mas, em s