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Mostrando postagens de março, 2020

Décimo dia

Dez anos depois, o telefone fixo voltou a tocar. Miragem auditiva, pensei. Mas minha mãe botou os pés no chão e atendeu a chamada. Pois não. Sim, está. Thiago, pra você. Tantos anos sem morar em casa, mas o telefone ainda toca pra mim. Num segundo, senti-me restituído ao lar. No outro, quase caí de costas. E aí, meu jovem, como é que tu tá? - Jacó?! Jacó Ceroulas foi meu amigo no princípio do século. Ele me apresentou a Rosendo Bulcão e me confiou toda a papelada do finado Marquês de Ariús. Sumiu como surgiu. E voltou! - Por onde você andou, homem de deus? Está bem? Em casa?! Com seu jeitinho peculiar, esbravejou contra deuses, o mundo e a pandemia. Bem que eu dizia, meu jovem, que vocês modernos não sabem de nada mesmo. E vão morrer por isso. - Mas, Jacó, não era você o moderno, ultramoderno, dos três? Era, meu jovem, do verbo ser no pretérito IMPERFEITO! Jacó, o bom e velho Jacó Ceroulas. Vive no campo, bebe do poço e come do que planta. Liguei pra lhe d

Oitavo dia

Passava das oito quando chamei Yasunari Kawabata pra dois dedos de prosa e estirei os pés na rede. Livreto com boa reputação, mas tão chato que, nem no tranco, pegou a leitura. De repente, comecei a ouvir uns barulhinhos estridulando muro afora. Muito tarde pras cigarras cantarem. Levantei, enfiei a cabeça na fresta da janela e o concerto ganhou coro. - Fora Bolsonaroooooo! Só então lembrei que o atleta da República devia estar malhando a língua em público àquela hora. Ainda quis correr à cozinha e sacar a panela, mas a rede rangeu mais alto. Governadores de todo o país, à esquerda e à direita, escutam a comunidade científica e adotam medidas semelhantes. O capitão, com três bilionários e um filho maluco, vai biritar. Ia mergulhado no resmungo quando senti uma coceira no braço. Desci o olho e - vixe Maria! Um, dois, três e não sei mais quantos aneizinhos brancos saltaram dos pelos no ar. O inseto voou até tomar razoável distância de mim, fez a curva e pousou n

Sexto dia

Tudo vai se encaixando na rotina provisória e os poucos compromissos ainda pendentes terminam migrando para o zap ou o skype. No sexto dia, nada mais me tira de casa. Ou tira. Ao meio-dia, minha irmã ligou desesperada. Tia Mércia quer ir à rua! Fazer feira, pagar cartão e sabe-se lá o que mais. Em dois pulos, paramentei-me, fui lá e abortei a saída. A essa altura do século, o supermercado exige pagamento em carne e osso da fatura. Quando a pandemia passar, depois do Presidente, o dono do Ideal há de se ver comigo. Na lotérica, duas ou três pessoas faziam o balé da não-aproximação quando tomei o lugar na fila e, passando por todos, chegou mais uma velhinha desafiadora do mundo. - Passei minha vida inteira no mato até que a família inventou de me trazer pra cidade. Nunca adoecei, não é agora que vou cair morta por causa de um bicho de nada. E contava dinheiro, e lambia os dedos pra passar as cédulas, e ameaçava deuses e vírus com o indicador em riste. Quem quise

Quarto dia

O tribunal finalmente decretou o trabalho remoto sem rodízio presencial e, na sexta-feira, eu pude deixar João Pessoa para me reunir a uma parte da família em Campina Grande. Na garagem, os rigores sanitários das doutoras minha mãe e minha irmã: banhadas chaves, solas e mala, deixei a roupa no balde e passei, como vim ao mundo, direto ao chuveiro. Aliviado da solidão, comecei a colher notícias de parentes e amigos espalhados pelo mundo. A tensão e os receios de colapso generalizado têm estressado a todos e levado ao choro. Até os mais céticos tremem. Alguns adiantam trabalhos, outros põem em dia listas de filmes e livros. Há os que rezam, os que confiam na ciência. Em geral, todos se preocupam com os mais vulneráveis. E as idéias de como ser útil por meio de algo além de não sair de casa vão brotando aqui e ali. Fazer feiras, antecipar salários, oferecer a casa para instalação de leitos hospitalares? Preocupações com renda também se acumulam. Quem vive de vend

Segundo dia

A quarentena bateu à porta, entrou em casa e disse que veio para ficar. A princípio, nem dei por sua presença. Mas hoje as coisas começaram a ficar um pouco diferentes. Moro sozinho em um edifício pequeno, com seis apartamentos. Um está desocupado, quatro estão mergulhados em silêncio. Cá estou, comigo e meus livros. Ontem, o movimento na rua parecia ser o de uma manhã de sábado; hoje, parecia o de uma tarde de sábado - suponho que amanhã acordarei no domingo. O que vem depois disso? Não tenho televisor. Escuto rádio, acompanho podcasts e leio notícias nos jornais. Parentes e amigos estão mantidos à enorme distância de um zap. Todos só falamos do vírus. Quando a rádio começou a transmitir informação ao vivo do Ministério da Saúde, pensei na cena banal de um filme de guerra que nunca esqueço. Não lembro qual era o filme. A cena: um homem estava pra colocar um disco no gramofone quando a rádio interrompeu a programação e anunciou a invasão estrangeira. O homem ficou