Semana que vem, minha segunda lembrança mais antiga completa 36 anos: era o velório de vovô Velhinho, meu bisavô, e eu, na pontinha dos pés, apoiava as mãozinhas no caixão pra ver o morto.
Aí vinha algum adulto e me afastava do espetáculo fúnebre, dizendo que ali não era lugar pra criança. Mas ali era a sala da casa dos meus avós e, no meio dela, haviam colocado uma cama florida.
Dentro da cama, dormia o Velhinho que, não bastasse a lembrança macabra, veio a ocupar outra: a primeira mais antiga que carrego - a dele vivo, sentado na cama, sem um perna, fitando o vazio.
Não sem razão, vovô Velhinho inaugurou minhas inclinações filosóficas. Criança, eu chorava pensando que todos estávamos fadados à mesma e sufocante sina daquele homem: a vida eterna.
Mas não é de metafísica que quero falar hoje com vocês. É de física mesmo, porque do lado de cá nascemos, crescemos, frutificamos, morremos. E é do lado de cá que ficam as pernas e os pirulitos.
Imaginem vocês que recebi o diagnóstico de pré-diabetes. Dado e confirmado por uma junta médica familiar, com direito à cara de "descanse em paz" de uma tia diante da glicemia cravando 150.
Um homem da civilização do açúcar. Disso sempre me orgulhei ao mergulhar 3 colheres envenenadas no café pequeno, sem falar nos doces, chocolates e brigadeiros com que me aliviava da existência.
Sim, leitor amargo, comer doce tinha para mim uma função filosófica. Porque duramos e, durando, repetimos dia após dia as mesmas e inúteis tolices, precisamos de uma peneira contra o Sol.
Que me perdoem Camus e os endocrinologistas, mas há peneira melhor que os glicídios bombando na corrente sanguínea e terminando em energia, urina e... ai, Apolo! formigamento nos pés?
Dito isso, os leitores de apurado senso lógico podem dizer que o mais adequado é enfiar o pé na jaca, com muito açúcar na compota do doce, e caminhar logo para o fim do Sol e das tolices.
Seria, não fosse a vida um paradoxo e nós, humanos, curvinhas sinuosas de imprevisível compreensão. Porque os pés me lembram as pernas e as pernas me levam, assustado, à lembrança inaugural.
Vovô Velhinho, sentado na cama, fitando o vazio e sem... ai, Apolo! Aguento tudo: o expediente, a insulina, o trânsito, a insuficiência cardíaca, o calor da bexiga, a retinopatia - mas as pernas, paciência.
Homem mediano, sem quase nenhum dote corporal ou intelectual digno de nota, o único bem de que a natureza me proveu com generosidade foram as pernas. Roliças, torneadas, peludas.
À noite, deito na cama e olho para elas. Agradeço a Apolo a única participação concedida em sua beleza e penso no morto que serei, metido em uma bermuda curta em um caixão sem flores.
- Que pernas! - dirão os pranteadores.
E porque as quero completas e belas, na vida e na morte, penso em vovô Velhinho e, com a resignação de um condenado, meto a cara no prato de alface com brócolis e no café amargo como uma broca.
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