Tempos atrás, ia voltando a pé da padaria quando, a cinco passos do portão, vinha passando uma senhora com o cachorrinho de mimação. A mulher notou que me detive, paralisado de medo.
Criança de braço, fui atacado com minha mãe por um vira-lata. Dos 3 aos 10 anos, estudei em uma escola que tinha dois cachorros brabos como auxiliares de disciplina da professora linha-dura.
Tenho mais trauma de cachorro que um judeu, em 1945, de campo de concentração. Para mim, são forças cruas da natureza, sem medo de infâmia ou polícia, sem compromisso com a civilização.
Mas a mulher não me deixou explicar. Dedo em riste, passou-me sermão sobre a vergonha de temer um serzinho inofensivo e saiu chutando o vento contra mim, transformado em especista, canalha.
Desde então, dei para espiar essa tendência de os cachorros andarem aí pelas ruas como gente e, nadando na contra-corrente, termino vendo dois ou três tubarões por trás das sardinhas.
Um exemplo. Sempre que um criança novinha se desgarra do responsável e vem se prender às minhas pernas, lá vem o pai ou a mãe, saltando mais que Nadia Comăneci em Moscou, a dizer:
"Perdão! Perdão! Perdão!" - e sai levando o projeto de humano adulto com uma simples lição de limite.
Mas, quando é um cachorro, e recolho as pernas assustado, lá fica a mimadora ou o paparicador, dizendo que aquilo não faz nada, é manso - e mal, marmanjo, fazemos nós uns aos outros. Bem o vejo.
Então, eu me ponho a pensar por que o bicho não merece limite de humano. E vejo a criancinha crescendo, lidando com estudos, trabalhos, finanças, amores e perdas - sofrendo como todos nós.
Enquanto o bicho vai crescendo em pança e trela. Tem casa, comida e roupa lavada, que o humano, não podendo ter sem fadiga, contenta-se em dar ao objeto em que projeta seu desejo.
Que ele faça irresponsavelmente, pois, o que é levado a fazer por instinto ou por algo que equivalha, em seu sistema nervoso, à vontade. Afinal, errados somos nós que nos metemos em encrenca.
Isso me levou a uma certa compaixão pelos humanos que me dão sermões. Passei a vê-los ainda mais como semelhantes em cujas fantasias e frustrações vejo as minhas próprias e me irmano.
Mas, então, lembrei-me de um famoso sádico que, passando-se por doente, violentava a vida emocional das pessoas do seu entorno até o ponto de arrastá-las consigo para uma forjada morte.
Mas as pessoas eram pessoas. Em algum momento, despertavam para a perversão do homem e se afastavam dele. O único que ficou até o fim, privado da liberdade e atado à coleira, foi o cachorro.
O cachorrinho de uma mimadora, de um paparicador, vira um cachorrinho estragado. Que objeto em frangalhos não virará o pobre cachorrinho de uma mente que submete outras à morte?
O famoso sádico escreveu um testamento, em que pedia com ternas palavras que suas cinzas fossem misturadas às cinzas do amado animal de violação. Inocentes acharam isso lindo de viver.
Mas ninguém suspeitou da causa secreta, do perverso Fortunato, a nos lembrar que certos semelhantes estão além do compadecimento. Cães, sem compromisso com a civilização.
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