Fui ajudar meu pai a declarar o imposto de renda e o encontrei revoltado com o Papa. Que o presidente da República diga asneiras, mal se tolera, mas o presidente não passa de um homem.
Já o Papa é o Papa. Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, Patriarca do Ocidente, Vigário de Cristo na Terra. O Papa não pode se dar ao luxo de soltar gracinhas; ele fala por Deus e Deus não fala tolices.
Meu pai não chega a ser um católico praticante. Talvez, seja muito mais um católico por formação que por convicção. E sua formação se iniciou nos anos 50, quando pontificava em Roma o Papa Pio XII.
Eugênio Pacelli foi um pontífice muito solene. Estava tão convencido de representar Deus que cada gesto, cada palavra, cada piscar de olho seu era encharcado de sacralidade e mistério.
Os funcionários do Vaticano, por exemplo, eram instruídos a se esconder quando o Papa aparecia. Afinal, se Deus não podia ser visto em sua glória, por que se veria o reflexo do seu esplendor?
Pio XII acreditava de tal modo que falava por Deus que se entregava a extenuantes leituras de enciclopédias. Queria saber de tudo para falar de qualquer assunto com a onisciência do chefe.
Na velhice, passou a padecer de crises de soluço. Pio XII soluçava e não havia oração ou remédio que lhe sossegasse o diafragma. O Vaticano pedia às escolas católicas que rezassem pela saúde de Pio.
Penso em meu pai como uma das criancinhas que, entre o ábaco e o abecedário, rezavam pelo soluço do Papa. Penso em como aquele semideus chegava e se instalava no imaginário das crianças.
Tudo bem que, de Pio XII pra cá, já houve Papas espontâneos e afáveis. Um João Paulo I sorrindo ali, um João XXIII gracejando acolá, mas os dois juntos não somaram cinco anos de pontificado.
Os demais Papas não chegaram a se cobrir da sacralidade de um Pio XII, mas eram sisudos ou sofredores. Paulo VI usava um cinto de silício para mortificar a carne. Sua voz soava com tristeza e dor.
Em João Paulo II, mesmo o sorriso era contido. Homem místico e profundamente cioso da autoridade papal, era um Papa de discursos lidos, preparados por teólogos e diplomatas do Vaticano.
Bento XVI vestiu-se e revestiu-se de séculos de tradição. Báculos e tronos dourados, vestes litúrgicas renascentistas e medievais, falas acadêmicas e sorrisos, quando muito, entalados na garganta alemã.
Quando Francisco perde a paciência e dá um tapa na mão da fiel ou deixa o argentino baixar na língua e tira onda com os brasileiros, isso soa humano como os Papas não costumam ser.
Que os Papas se cansem e renunciem ou soltem uma piadinha de bolso na rua, isso há de fazer um bem danado ao seu próprio juízo. Mas não é de estranhar que alguém se pergunte: e o mistério?
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