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O sonho de Alberto

Onze anos atrás, no Rio de Janeiro, avistei no mesmo dia Alberto da Costa e Silva, Evanildo Bechara e Lêdo Ivo. Até hoje, tento entender, desse triplo encontro, o detalhe do que não ocorreu.

Tomei coragem e me aproximei de Evanildo Bechara e Lêdo Ivo. Com um, falei sobre Anézio Leão, o gramático campinense de quem ele tinha vago conhecimento, mas não a rara gramática.

O outro, quando abordado, foi logo dizendo: "um jovem querendo falar com um velho poeta só pode ser outro poeta!" E soltou aquela risada do menino maroto que queria ser nosso Rimbaud.

Diante de Alberto da Costa e Silva, porém, paralisei.

O velho diplomata foi gentil com meu silêncio. Parou e me estendeu os olhos da escuta, aguardando as palavras que, bailando na ponta da língua, recuavam, suadas e coradas, para a coxia.

Entramos no elevador, descemos juntos quatro ou cinco andares. Eu empurrava as palavras para o palco; elas tropeçavam, esperneavam e não iam. Ele quase se oferecia para traduzir a luta.

O térreo nos separou.

Passada a década, o obituário de hoje me leva de volta àquele dia.

Morreu o homem que conseguiu conciliar o ofício de historiador com o de poeta, o intelectual que conseguiu engatar uma sólida carreira de africanista sem o lastro de uma cátedra universitária.

Lembro as tardes forenses angustiadas de vinte anos atrás, em que eu buscava uma saída do precipício para o qual me arrastava. E a figura de Alberto da Costa e Silva brotava na mente, salvadora.

Aos 20 anos, eu queria ser Alberto. E Alberto, então, tomava posse na Academia, com um discurso terno, em que dizia: "Só isto quis e quero: cumprir esse vaticínio, ser o que o meu pai sonhou ser."

Onze anos atrás, as conversas com Evanildo Bechara e Lêdo Ivo terminaram à porta do mesmo banheiro em que ambos entraram para se livrar das sobras do corpo.

Amanhã, o corpo de Alberto da Costa e Silva será cremado e voltará ao pó, com os olhos que não me ouviram, mas talvez tenham me enxergado.


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